São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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QUADRINHOS

Convidado do Festival de Quadrinhos de Pernambuco, Don Rosa fala sobre seu trabalho e o mestre Carl Barks

Herdeiro do "verdadeiro" Patinhas vem ao país

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

Walt Disney não desenhava histórias em quadrinhos. Ainda que alguns fãs das revistinhas estejam carecas de saber disso, o fato é que, por muito tempo, as histórias de Mickey e sua turma, publicadas no Brasil desde a década de 50, traziam sempre uma única assinatura: a de Walt Disney.
Carl Barks (1901-2000), que desenhou -e na verdade criou- toda a linhagem "patológica" da Disney entre as décadas de 40 e 60, foi um dos poucos que conseguiram furar o bloqueio e se firmou como um autêntico e inconfundível desenhista da empresa.
Keno Don Rosa, 53, autor da premiadíssima "Saga do Tio Patinhas" e considerado o único herdeiro legítimo do estilo de Barks, talvez seja o outro. Publicada recentemente em dois volumes pela editora Abril, trata-se de um épico que reconta como Tio Patinhas conquistou a sua fortuna desde a fatídica primeira moedinha -conseguida engraxando sapatos muito, muito tempo atrás...
(As HQs de Barks também acabam de ser reeditadas pela Abril.)
Ao contrário da imagem de ganancioso pela qual ficaria mundialmente conhecido, Rosa tenta mostrar um outro lado de Patinhas: "A personalidade que outros escritores lhe deram ao longo dos anos está muito distante da minha. Acho que ganância (com fundamentalismo religioso) é a raiz de todos os problemas no mundo, e eu não toleraria contar histórias de um herói motivado apenas por isso", declarou por e-mail à Folha o autor, um dos principais convidados do 6º Festival Internacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco, que começa na terça-feira em Recife.
Leia a seguir alguns trechos da entrevista em que Rosa fala sobre patos, ratos e até um famoso papagaio carioca, tema de sua próxima revista em quadrinhos.

Folha - Você é considerado o legítimo sucessor de Carl Barks. O que diria que herdou dele?
Keno Don Rosa -
Muita gente diz que nunca teria se atrevido a seguir os passos de Carl Barks. Houve centenas de artistas nos quadrinhos do Pato Donald, mas nenhum se tornou notável, menos ainda um rival de Barks. Por que eu não me assustei em seguir o mestre e criador do universo de Donald? Simples: nunca tive a intenção de ser nada além de mais um entre tantos escritores e desenhistas. Na verdade, minha intenção era criar só uma história. Jamais passou pela minha cabeça que me tornaria o mais popular criador do Pato, depois do meu ídolo de infância. E a ficha ainda não caiu, mesmo após 18 anos.

Folha - Muitas pessoas se identificam com Mickey, o personagem mais popular de Disney. Por que você foi atrás do Pato?
Rosa -
Mickey Mouse é o símbolo corporativo de Disney, não mais que isso. Donald tem sido mais popular que o Mickey desde que foi criado, em 1934. Disney não poderia fazer de um personagem cabeça quente, com tanta personalidade, o símbolo de sua companhia. Esse trabalho deveria ficar com um personagem fofinho, mas vazio, como o Mickey. Mas não há dúvida de que o mundo prefere as falhas humanas de Donald e Patinhas. Donald sempre esteve na capa da [revista americana] "Walt Disney's Comics and Stories", o título mais longevo do mundo entre os quadrinhos Disney. E na Europa os semanais da Disney são chamados "Pato Donald e cia.", não "Mickey Mouse". Donald sempre foi a estrela desses quadrinhos e representa 90% dos quadrinhos Disney produzidos até hoje.

Folha - Desde a década de 70, as HQs Disney não têm tido o mesmo sucesso que as animações ou os produtos licenciados. Por quê?
Rosa -
Disney usava Donald não como um personagem, mas como um ator que desempenhava papéis diferentes a cada filme. Tudo o que fazia era se envolver em batalhas desastradas jogando nozes no Tico e Teco por sete minutos. Até os quadrinhos que não eram do Barks fizeram melhor uso do Donald. Se Disney tivesse feito um único longa com ele, aí a história seria outra. Na década de 50, os quadrinhos Disney vendiam 3 milhões de cópias por mês. Por que não fazem mais sucesso nos Estados Unidos hoje? É uma crise que se arrasta desde os anos 60, havia poucos leitores para sustentar uma distribuição nacional e a empresa parou a publicação. Hoje, com a venda direta [lojas especializadas pegam os pedidos antes de as revistas serem produzidas], a indústria de quadrinhos sobrevive com cerca de 20 mil cópias por edição, ao contrário dos milhões vendidos 50 anos atrás. Tornou-se um hobby cult, não mais um veículo de massa como era.

Folha - Você está trabalhando em uma nova história a partir de "Você Já Foi à Bahia?", filme que lançou o Zé Carioca. O que acha dele, o primeiro Disney 100% brasileiro?
Rosa -
Em primeiro lugar, queria dizer que o único grande uso do Pato Donald jamais feito por Disney foi nesse filme. Apesar da curta duração, é o meu desenho favorito. Sempre gostei do Zé, por isso criei duas histórias baseadas nesse desenho, as únicas que fiz até hoje que não são baseadas nos quadrinhos de Barks. Mas pode ser que vocês não gostem da minha versão do Zé Carioca. Houve centenas de quadrinhos dele criados no Brasil, mas ninguém nos EUA os conhece. Pelo pouco que vi, ele é retratado como um vagabundo preguiçoso que passa seu tempo enganando gente rica por dinheiro ou comida. Não acho que isso serviria à minha história. Por isso voltei ao filme original, onde ele é uma espécie de cantor de cabaré, não muito bem-sucedido, mas divertido e mulherengo. Posso dizer também que, depois de deixar o Rio de Janeiro, ele parte em uma aventura no Mato Grosso. Queria evitar usar a floresta amazônica, já que é tudo o que os americanos pensam quando se fala em Brasil. E o Brasil é muito mais do que uma selva hostil. Só espero que vocês não rejeitem o meu Zé.



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