|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
A crítica e o tempo
Meses atrás , Marcelo
Rubens Paiva comentou,
um pouco hiperbolicamente, que,
escrevendo sobre "Bala na Agulha", eu fora o único resenhista a
descobrir determinado lapso no
seu "thriller". Não se tratava de
nada grave. Um cadáver, numa
das tramas secundárias, aparecia
degolado e, mais adiante, comentava-se que o defunto havia sido
torturado com agulhas de injeção
na gengiva. Como, todavia, ninguém lhe achara a cabeça, não se
entendia de onde surgira a informação.
Era quase seguramente um caso
de falha de continuidade. A cabeça ausente, quem sabe, reaparecia numa versão anterior à publicada, mas, ao eliminar esse possível incidente elucidativo, o autor
não acomodara a tal alteração
todos os detalhes relevantes.
Coisas similares acontecem em
diversos romances, em filmes etc.
Obras complexas que são, cuja
elaboração leva tempo, se perde
aqui e ali a concordância de alguma minúcia com outras. Por
exemplo, ao reler, para adicionar-lhe notas de rodapé, as provas da nova edição de "Os Meninos da Rua Paulo", de Ferenc
Molnár (traduzido do húngaro
por Paulo Rónai e publicado agora pela Cosac Naify), percebi que,
não obstante a trama se desenrolar em meados da década de 1880,
um personagem mencionava
anacronicamente a guerra russo-japonesa de 1904, contemporânea
não da ação, mas da redação do
livro.
Mesmo um gênio como Franz
Kafka cometia lá seus deslizes. Ele
compôs um breve conto no qual
fala do silêncio das sereias. Estas,
que na "Odisséia" atraíam cantando os navegantes rumo aos recifes de sua ilha, teriam se calado
para Ulisses, que nem sequer tomou conhecimento do fato, pois,
além de amarrado ao mastro do
navio, tapara, a fim de resistir à
cantoria das moças do mar
("mermaids"), seus ouvidos com
cera. Ora, o que Homero conta é
que Ulisses tapara os ouvidos dos
remadores, não os próprios, para
que aqueles não cedessem às sereias. O herói, por seu turno, se
deixara imobilizar com o intuito
de ouvi-las sem correr o perigo de
se dirigir à fonte melodiosa de sedução. Se Kafka era alguém capaz de introduzir propositadamente um erro assim em sua versão da história, é provável que este não passe mesmo de um acidente. E só uma sessão espírita
com ele permitiria desfazer a dúvida.
Uma vez que não existem obras
nem autores perfeitos, apenas escritores e livros melhores ou piores, tampouco são ocorrências semelhantes que determinam o modo como os avaliamos -desde, é
claro, que sejam, no conjunto, raras e desimportantes. Julgam-se
obras de ficção por meio de critérios mais intricados, complexos,
abrangentes. Assim, quando, no
filme "Central do Brasil", Dora
(Fernanda Montenegro), uma velhinha inescrupulosa a ponto de
vender para "desmanche" um garoto cuja mãe nem sequer esfriara
na cova, muda súbito de idéia e
resolve praticamente adotá-lo,
conclui-se que estamos diante de
um personagem central inconvincente, ou seja, de um grave defeito
estrutural.
Quem, no entanto, determina
quais deficiências comprometem
uma obra, quais são meramente
superficiais? O bom senso, sem
dúvida, ajuda. Há narrativas
que, malgrado carecerem de uma
trama decente ou de coerência interna, foram tão bem escritas que
lê-las dá prazer, e sobram muitas
que, apesar de um linguajar insosso ou até ruim, conseguem, devido a um enredo interessante,
envolver leitores exigentes. Cada
caso é um caso, as combinações
são infinitas, e o que conta, afinal,
é o resultado. Não que faltem teorias elaboradas que acenam com
a miragem de uma avaliação inequívoca dos produtos culturais.
Sucede, porém, que elas raramente funcionam e o juízo estético
(jamais definitivo) decorre antes
de circunstâncias empíricas.
Constatá-lo equivale não somente a tratar os construtores de
edifícios conceituais menos como
guias infalíveis do que como conselheiros ocasionais mas também
a desiludir os praticantes que
acreditem possuir ou desejem adquirir a chave-mestra de todas as
fechaduras. Não que isso reduza
obrigatoriamente qualquer juízo
de valor à mera opinião subjetiva, porque esse se compõe, em doses cambiantes, de elementos subjetivos, intersubjetivos e objetivos.
Entre os últimos se encontram,
digamos, o sentido corriqueiro
das palavras e as regras gramaticais. Ilustram os primeiros pessoas que não gostam de tal ou
qual gênero, deste ou daquele assunto. Quanto aos intersubjetivos, são os que um grupo de indivíduos acata, em certo momento
e lugar, como consensuais. Cada
categoria, que não está cercada
por um muro intransponível,
convive com as demais em extensas zonas cinzentas. A tarefa inicial dos candidatos a críticos consiste em não as confundirem. Daí
que uma das marcas registradas
da crítica incapaz do discernimento que a legitimaria seja a insistência estridente na objetividade de pontos de vista pessoais,
com o excesso de decibéis ou a
profusão de adjetivos substituindo a argumentação fria e o raciocínio persuasivo.
Eis aqui uma regra útil: quanto
mais uma resenha transborde de
certezas, quanto mais um ensaio
se valha de expressões "fortes",
"duras", taxativas, tanto melhor
é percorrê-los com distanciamento, cautela e generosas pitadas de
sal. Se existe uma virtude ou deficiência objetiva na obra ou autor
analisado, cabe ao crítico mostrá-las e demonstrá-las. O restante se
situa na "twilight zone", onde a
excentricidade pessoal se mistura
com/ou procura se converter em
consenso. Caso domine os recursos retóricos, um crítico que se
empenhe está apto a fazer prevalecer suas opiniões. O que não implica que ele tenha razão e que
elas passem pelo mais rigoroso
dos testes: o do tempo.
Texto Anterior: Quadrinho: Sem alarde, Daniel Clowes volta ao cinema Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Folha promove leitura de "Desconhecidos" Índice
|