São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 2006

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Atraso em preto-e-branco

Uma das mais ácidas críticas ao processo revolucionário cubano, o filme "Memórias do Subdesenvolvimento" (1968) é finalmente lançado em DVD no mercado brasileiro

Obra de Tomaz Gutiérrez Alea mistura documentário e ficção para questionar os rumos tomados pelo regime do ditador Fidel Castro

Divulgação
Cena de "Memórias do Subdesenvolvimento"


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um homem de tez caribenha e ares europeus anda por entre as prateleiras de uma livraria de Havana. Na estante, uma biografia do cosmonauta russo Yuri Gagarin e romances de Nabokov. Observa uma moça com cara de ingênua.
Seria apenas uma tarde qualquer na capital cubana se o ano não fosse o de 1961 -dois após a Revolução Socialista- e se, por trás da câmera, não estivesse o diretor Tomaz Gutiérrez Alea (1928-1996), mais conhecido hoje pelo sucesso de "Morango e Chocolate" (1994).
"Memórias do Subdesenvolvimento" (1968), que sai agora em DVD no Brasil (Videofilmes, R$ 46), é um dos mais importantes documentários latino-americanos e um dos principais registros que o cinema cubano produziu sobre sua revolução socialista. "É muito mais interessante do que o "Encouraçado Potemkin" [1925], por exemplo", diz o cineasta Eduardo Coutinho, comparando-o ao clássico de Sergei Eisenstein. "A União Soviética teve um cinema pós-revolucionário, mas era de pura exaltação ao novo regime. O cinema cubano do início dos anos 60 foi único ao olhar para o processo de implantação do socialismo de um modo muito crítico", diz o diretor de "Edifício Master".
"Memórias" conta a história de Sergio, um homem de 38 anos, de classe média alta, que vê sua mulher e seus amigos fugirem da ilha e do comunismo logo após a revolução. Ele não quer partir, não porque seja um revolucionário, mas porque quer saber o que vai acontecer. É um personagem que destoa do ambiente, e seu anacronismo é o modo pelo qual Alea critica os rumos que o regime tomava rumo ao autoritarismo.
"Ele reflete o que sentíamos todos nós daquela geração. Não queríamos abandonar nossas raízes porque isso seria desprezar a nossa lucidez. E víamos o que estava acontecendo como uma espécie de delírio coletivo", conta à Folha o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, autor de "Trilogia Suja de Havana" e que, assim como Alea, apesar de ser anticastrista, nunca deixou Cuba.
O filme mescla cenas documentais "de verdade", tomadas à época da batalha de Playa Girón (1961) e da Crise dos Mísseis (1962), e cenas documentais "de mentira" -como o episódio armado que mostra um aeroporto repleto de cubanos ricos carimbando passaportes para deixar o país. Há ainda um romance ficcional e a interferência da realidade nessa ficção -como quando o protagonista vagueia no meio de uma festa real do 1º de Maio.
Para o cineasta Nelson Pereira dos Santos, a individualidade da obra está nessa combinação entre documentário e ficção, com toques de neo-realismo. "Alea tomou o neo-realismo e o levou mais adiante", diz.
Após ser abandonado por seus circunstantes, Sergio fica sozinho em seu apartamento, que, apesar de amplo e com uma luxuosa vista para a orla, faz com que se sinta sufocado. "Nesse lugar Alea tem um momento Godard, pois segue o protagonista entrando e saindo dos quartos de sua própria casa como se estivesse em uma prisão, tudo com planos longos e artísticos", diz Coutinho.
O filme é baseado no romance homônimo do escritor Edmundo Desnoes, hoje exilado nos EUA. "Ele e Alea realizaram "Memórias" no período de dez anos após a revolução, quando a vigilância e censura do Estado não eram tão intensas e ainda era possível produzir uma crítica tão intensa ao regime", diz Gutiérrez.
O diretor de "Rio 40 Graus", por sua vez, chama a atenção para o fato de o filme trabalhar com conceitos relacionados ao contexto dos anos 60/70, mas que não perderam a atualidade. "Desenvolvimento e subdesenvolvimento são palavras datadas, mas que mostram como a história, às vezes, parece curta e, na verdade, não é. "Memórias" nos indica que ainda não saímos daquele período."


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