São Paulo, quarta-feira, 23 de maio de 2007

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MARCELO COELHO

Tigres, oráculos e bolas de fogo

Nada seria mais chato do que um código numérico para nomear as operações da PF

MUITAS ASSOCIAÇÕES de idéias mais ou menos óbvias se seguiram à divulgação da espetacular Operação Navalha, da Polícia Federal. O nome evocaria a idéia de um governo capaz de "cortar fundo", ou "cortar na própria carne", uma vez evidenciadas as falcatruas em licitações públicas. Mas, como as negociatas não se restringiram à esfera do governo federal, a explicação para o nome adotado não me convence muito. Prefiro pensar, mais fantasiosamente, que a "navalha" a que se refere a Polícia Federal tenha sido inspirada nos vastos bigodes do empresário Zuleido Veras, o dono da empreiteira Gautama. Mas nunca saberemos.
Passei os olhos, no site da Polícia Federal, pela lista das operações realizadas nos últimos tempos. Apenas as mais importantes -Vampiro, Sanguessugas, Hurricane- terminam ganhando notoriedade pública. Mas a lista completa é um arquivo de metáforas para todos os gostos. Há aquelas de inspiração clássica: Ícaro, Artêmis, Caduceu, Afrodite (esta última focalizava o tráfico internacional de mulheres). Outro grupo usa nomes de bichos: Tigre, Rêmora, Enguia.
Às vezes falta imaginação, e uma investida policial em Guarulhos recebe o decepcionante nome de Operação Guaru.
Mas logo voltam as imagens mais ousadas. Uma repressão a madeireiras ilegais ganha o título de Operação Pinóquio; fraudes em concursos públicos na área de medicina, nas quais alguns candidatos sabiam os resultados das provas com antecedência, são desbaratadas pela Operação Oráculo.
Mercadorias sem registro em lojas de armarinho? Operação Boneco de Pano. Comércio clandestino de cigarros? Com alguma dose de megalomania, a operação ficou sendo chamada de Bola de Fogo. Já a Dilúvio mereceu o nome: dela participaram 950 policiais, e mais de cem pessoas foram presas por fraudes no comércio internacional.
Chegamos perto do delírio quando surge a Operação Decadência Total, reprimindo irregularidades no INSS em Ponta Grossa. Máfias no INSS não faltam, o que levou a um certo esgotamento de nomes razoáveis para esse tipo de ações da PF: esta a única explicação que encontro para o gosto, para lá de duvidoso, de uma tal Operação Senil.
Notas fiscais fraudulentas em serviços odontológicos motivaram uma pequena obra-prima do gênero, a Operação Boca Limpa. Mais poesia, certamente, há na Operação Estrela Dalva, que ganhou esse nome por ter sido realizada na cidade gaúcha de Alvorada.
Quem foi jovem durante o regime militar tende até hoje a ficar com o pé atrás em tudo que se refere a ações policiais. A lei, no meu tempo, estava encarnada na figura do advogado. Veio depois a era do Ministério Público: deixamos de ver os responsáveis pela acusação judicial como figuras inquisitoriais e de coração duro, mas sim como aquilo que de fato são, defensores de uma sociedade à mercê de todo tipo de esbulho e violência.
O curso dos acontecimentos nos leva ao que tinha sido impensável 30 anos atrás: aplaudir as ações da polícia. Pelo menos, a federal.
Quando vejo o capricho com que são escolhidos os nomes dessas operações, sinto em parte a alegria que experimentava, na infância, ao entrar num táxi cheio de penduricalhos e enfeites no painel.
Aqueles esqueletos de plástico presos ao retrovisor, aquelas chapas magnéticas onde se inscrevia a clássica mensagem do "Não corra, papai", aquelas onças de pelúcia postadas no bagageiro, cujos olhos vermelhos se acendiam quando o motorista pisava no breque, tudo isso deve ter sido proibido por alguma portaria municipal. É pena.
Quando eu era criança, pareciam-me sinal de que o taxista gostava de sua profissão. Talvez eu intuísse, no gosto do taxista por tantos badulaques, um pouco da infantilidade que eu mesmo tinha.
Nada seria mais chato do que um código alfanumérico qualquer para identificar as operações da PF. No fundo, o que há de bom nesses nomes tão arbitrários e subjetivos é a rejeição, que todos temos em certa medida, a um mundo feito exclusivamente de abstrações.
O pensamento "figurativo", por assim dizer, que prefere imagens a letras e números, constitui sempre um sinal de vida -mesmo que venha acompanhado de um certo mau gosto.
Haverá poetas na Polícia Federal? Bons ou maus, não importa: este leitor agradece.

coelhofsp@uol.com.br


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