São Paulo, sexta, 23 de maio de 1997.



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NOITE ILUSTRADA ESPECIAL
Um diário de DJs em primeira viagem

ERIKA PALOMINO

Pela primeira vez DJs brasileiros participam de uma turnê fora do Brasil, nos moldes da cena internacional. Mau Mau e Felipe Venancio representaram o país dentro da Kaos Tour, nos últimos 15 dias em Portugal. A Kaos é uma gravadora portuguesa, bem relacionada na Europa e EUA. A trupe chega esta semana ao Brasil: hoje toca no Rio, na Fundição Progresso, amanhã em BH, sábado em Curitiba, junto com os portugueses Vibe (house) e Jiggy (tecno). Vale ouvi-los.
Esta coluna traz o diário da turnê, relatando seus problemas e grandes momentos. Como espectadora, pude conferir o reconhecimento legítimo do talento brasileiro: os dois DJs eram reconhecidos na rua, davam autógrafos, tinham seus nomes gritados nos clubes. Jornalistas e outros DJs completavam o hype. Depois de início com horários não muito favoráveis, houve a valorização. Numa rádio, Mau Mau revela que "seu som não é tão tecno assim e pede respeito", sem querer tocar "forte" (pesado). E a verdadeira e carinhosa "piada de português", na chegada a Portugal: Mau Mau é perguntado na alfândega "para quê tantos discos?" Depois de explicar, o policial retruca: "Aqui não se usam mais discos. Só CD."


A jornalista Erika Palomino viajou a Portugal a convite da Kaos Tour e da produtora Low Profile.


Divulgação
Animado, Mau Mau registra e é registrado no cenário pitoresco, tipo Veneza, da cidade portuguesa de Aveiros, passagem da turnê


QUINTA-FEIRA
Nosso primeiro contato com a cena musical portuguesa acontece na loja de discos Discomundo, uma das mais movimentadas de Lisboa. Junto com a Discomundo tem a Gardenia, multimarca de roupas e objetos clubber, cheia de trecaiada da Wild and Lethal Trash (WLT), um dos hypes favoritos de modernos de todo o mundo. Todo mundo se jogou nas roupas.
À noite, jantar num restaurante de camarões gigantes e lagostas vivas, o Arpão. Encontro para conhecer Jiggy e o produtor e engenheiro de som Dr. Jay, um magricelo de cara engraçada que definiu o som de muita coisa por lá. A noite em Lisboa começa tarde. Assim, ciceroneados pelo incansável Amaral, mais à noite seguimos para o Bar do Rio, um lugar meio dzarm com decoração de quadrinhos e público mauricinho, mas animado. O lugar é à beira do rio, num píer.
No clube Kremlin, às 4h ainda se esperava encher. O som é uma house elegante, boa, mas sem ataque. Não é o que queremos. Um táxi malcriado nos leva para o Alcântara Mar, a principal mobilização da noite lá. Na linha exótica, a decoração tem paredes de veludo vermelho e espelhos inclinados. Susto: tocando rock, U2 e Bush. Incrédulos, vemos uma pista entupida por umas 600 pessoas (fora o restante do clube) pulando ao som de "Swallow". Só lá pelas 5h o DJ principal, um certo Paulo Leite, chegou. Ufa! Com a entrada dele muda o som: entra o mega-hit português "So Get Up", do DJ Vibe, popularizado por Junior Vasquez. De repente, tô passada: uma explosão de fumaça na pista, um equipamento de CO2 que vem de baixo e parece que está tudo indo pelos ares, com um barulho de avião. O resto já é puro folclore da noite, com um staff inesquecível fazendo a casa pegar fogo: sobre as bancadas dos bares e sobre as mesas um grupo de cinco pessoas (look-alikes de Heitor Werneck e de Cacá Ribeiro, mais ou menos) se esfregam, dançam e dão um moderno e pós-moderno look à coisa toda. Daft Punk e congêneres no som, deixamos o lugar às 7h.

SEXTA-FEIRA Viagem longa até o Porto. Que é belíssima, um patrimônio da humanidade tombado. Vamos de carrinha, que é como se chamam por lá esses carros tipo van. Depois descobriríamos que a carrinha viria a ser parte de nossas vidas portuguesas... A primeira festa é numa antiga igreja, no alto de um morro. Só de tecno. Mau Mau e Jiggy, mais um warm-up act do novo Model 9000. Mau toca pesado como há muito não faz. Sucesso. Um fã, empolgado, pede "qualquer coisa" do Mau Mau, que concorda em dar um de seus brincos. Fotos; autógrafos.

SÁBADO
Volta para Lisboa. Lisboa/Setúbal, a uma hora da cidade. Felipe Venancio abre a festa, tipo rave, numa fábrica de cerâmica, meio Fundição Progresso. Com intimidade com este tipo de ambiente, na terceira música já tem uma pista. Sucesso. Justin Robertson, do Lionrock, entra na sequência, avisando que "não ia estragar o que Venancio tinha feito". De fato, é brilhante, misturando house e tecno com alegria e criatividade. Vibe muda o som, tocando meio trance. Mau Mau entra de manhã, levantando as pessoas à luz do sol, ainda tocando um pouco "forte" por entrar depois de Jiggy. Ninguém da trupe gostou de os brasileiros abrirem e fecharem a festa.

DOMINGO
De novo de volta ao Porto. Haja carrinha. A festa desta vez é ao ar livre e acaba sendo a pior da turnê. O ambiente é universitário, num evento anual que se chama Queima de Fitas. Tipo quermesse, na verdade. Uó. Som baixo e público nada clubber ou underground. Detalhe: frio de 8 graus. Mau Mau se destaca, entrando às 8 da manhã, já com sol. Desencanando de tocar forte, faz seu som, animado e pra cima. Tudo ia bem até os seguranças colocados do lugar resolverem acabar com a festa: teve moto acelerando no palco e muita grossura até terminar num inexplicável arrastão do público. E a gente pensa que charufice é só aqui...

SEGUNDA
Os problemas de Venancio e Mau Mau abrindo e fechando mudam o clima do grupo e fazem o produtor Roberto Pedroza ganhar o apelido de "Betinho Enxaqueca", em homenagem ao personagem da MTV. Depois de dormir o dia todo, saímos do Porto às 19h. O resto é carrinha.

TERÇA
Dia livre! Mais ou menos. Compras, Gardenia e jantar interminável no restaurante (adivinhe?) Arpão. Depois, os horários trocados do fim-de-semana deixaram todo mundo com insônia. Drama.

QUARTA
Compras! Finalmente! O povo se joga na Virgin, que passa o dia parada com os portugueses estáticos diante do clipe novo de Michael Jackson. Passeio pelo Bairro Alto, uma espécie de SoHo português, com artistas, povo e bichas.
Jantar no Caravela, um lugar exótico tipo Arpão, mas mais bagaceiro. Fica no Largo do Alcântara, o único lugar que fica aberto para comer mais tarde. O camarão lá era clubber: tipo virado.

QUINTA
Dia de artistas mesmo. Coletiva de imprensa/apresentação de Mau Mau e Felipe Venancio na Gardenia, mais entrevista na rádio.

SEXTA
Os Murk Boys Ralph Falcon e Oscar G chegam com a vocalista Pamela Williams para encarnar ao vivo o projeto Funky Green Dogs. Chatos e antipáticos, são imediatamente batizados de Smurf Boys. Ela não; é animada. Levados para jantar (adivinhe?) no Caravela, Pamela tenta comer um prato mais que exótico chamado "perceves das Berlengas". Algo como patinhas do Baby Sauro. E brincou ao cantar "Fired Up" e soluçar.
Para quem já viu clubbers perderem os sentidos com esta música, uma cena inesquecível. On the road na carrinha para São Pedro de Moel, uma praia envolta por uma reserva ecológica. Mar, pedras e mata. No clube, duas pistas. Venancio se destaca, na de baixo, depois de literalmente fechar a de cima, onde tocava um dos Smurfs.

SÁBADO
De manhã encontramos o case do Mau Mau no corredor! De tão cansado, coitado, entrou no quarto e fechou a porta. A última festa é em Póvoa de Varzim, a quatro horas de Lisboa. O clube fica dentro da areia em si. Tipo caos, uma das três pistas não abre, deixando vários DJs de fora. Mau Mau toca, honrando a bandeira brasileira. A noite/manhã continua com o DJ Morrice, visceral, intenso e telentoso. Vibe fecha a festa, com um som consistente que justifica seu hype nas revistas e pistas internacionais. Saímos às 13h. Tchau!



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