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CONTARDO CALLIGARIS
O estrago do "mensalão"
Poucos dias atrás, o presidente Lula mencionou "Mani Pulite" (mãos limpas), a operação da magistratura italiana que,
ao longo dos anos 90, combateu a
corrupção na política da península. A alusão servia para prometer
perseverança na investigação das
denúncias que assombram Parlamento e governo.
Para os italianos, "Mani Pulite"
foi um resgate da consciência cívica. Alguém, de repente, parecia
levar a República a sério; quem
sabe, todos seguissem o exemplo e
se tornassem cidadãos para valer.
Diga-se de passagem, nos últimos anos de "Mani Pulite", alguns magistrados pareciam mais
sedentos de glória e sangue do
que de justiça. Pairou a dúvida de
que a operação fosse mais uma
politicagem.
Seja como for, a alusão do presidente me fez pensar nos percalços
pelos quais passam nossas tentativas (frustradas) de constituirmos, enfim, uma sociedade.
Inventar o cidadão é a maior
dificuldade moderna. Sua formulação básica é a seguinte: como se
constitui uma consciência que dê
valor à coletividade numa cultura em que, sem retorno, o indivíduo é o valor prioritário?
Voltemos à Itália. Entre o fim
do século 19 e a Primeira Guerra
Mundial, os ideais modernos impunham uma efetiva reorganização social (apesar da persistência
da monarquia). Foram décadas
dominadas por um ilustre primeiro-ministro centrista, Giovanni Giolitti, que era especialmente sensível ao fato de que os
tempos exigiam um novo tipo de
subjetividade política. Uma sociedade que valoriza o indivíduo (a
ponto de contar o voto de cada
um) não se mantém unida sem o
sentimento de um destino e de
um bem comuns. Mas, se o indivíduo é um valor superior à comunidade, como conferir dignidade
ao que é social e coletivo?
Uma solução de Giolitti consistia em idealizar o serviço público.
Uma sociedade, mesmo composta
de indivíduos separados, existe
quando o cargo público não é percebido nem como encosto nem como fracasso social nem como ocasião para gozar do poder, mas como exemplo de dedicação, como
forma de excelência moral.
Não deu certo. Os esforços para
constituir um novo laço entre indivíduos produziram caricaturas
do espírito comunitário da sociedade tradicional. É sempre assim
quando, incapazes de inventar o
futuro, ressuscitamos um morto:
o morto reaparece na farsa ou no
horror.
Na época de Giolitti, surgiu o
nacionalismo que sustentou tanto as conquistas coloniais (farsa)
quanto a Primeira Guerra Mundial (horror). Mais tarde, para
convencer os italianos de que eles
eram um povo só, veio o fascismo
(farsa e horror).
Floriano Peixoto e Prudente de
Morais, pelo que entendo, sonhavam com a mesma dignidade da
República e do serviço público republicano. Perderam-se tentando
afirmar a unidade da nação pelo
massacre da revolta catarinense e
do povo de Canudos (nota: se você quiser refletir sobre essa história, não perca "A Luta, parte 1",
quarto "capítulo" de "Os Sertões",
em cartaz até o fim de junho, no
Teatro Oficina).
Como no exemplo italiano, não
deu certo. Em vez da unidade republicana, veio o fascismo na versão Vargas e, mais tarde, na versão da ditadura militar.
Claro, houve intermezzos, em
que a tentativa de construir uma
sociedade de indivíduos não produziu nem farsa nem horror. Na
era de Juscelino, o sonho visionário da modernização propôs à nação uma grande aspiração comum.
Mais recentemente, apesar de
algumas sacudidas, houve a sensação de uma gestão dedicada e
eficiente (uma espécie de modernidade alcançada), nos primeiros
quatro anos de Fernando Henrique, mas a sensação morreu nas
negociatas para a renovação do
mandato.
E houve a eleição de Lula. O
país manifestou sua decisão de se
dar um governo capaz de pensar
num interesse superior, no bem
comum (que na modernidade
-dificuldade suplementar- inclui o respeito da liberdade dos
indivíduos).
Ora, pensar no bem comum não
significa apenas resistir à cobiça
de quem tenta saquear a coisa
pública. Significa também evitar
a tentação de agir para ser amado (é o risco populista) e significa
sobretudo resistir ao charme abstrato do exercício do poder. Esse é
o risco que mais espreita quem
governa: considerar que a prioridade não é transformar o mundo,
mas se manter no governo e aumentar o alcance de seu poder.
Se a denúncia e os indícios da
prática do "mensalão" atingem,
hoje, a esperança coletiva, não é
pela cobiça de quem teria vendido seu mandato (aqui, nenhuma
surpresa). Mas é porque tudo parece indicar que a razão da compra teria sido uma vontade abstrata de ampliar limites do poder.
Os votos que teriam sido comprados não eram votos que faltassem para aprovar uma reforma
necessária (a própria reforma política, por exemplo). Nesse caso,
Maquiavel (ao menos ele) compreenderia: aproveita-se a corrupção de um mundo decrépito,
para transformá-lo.
Se os indícios se confirmarem,
foram comprados votos para não
ter que distribuir cargos, ou seja,
para estender abstratamente o
poder: te pago para que eu governe.
Um personagem de Hemingway, na Guerra Civil espanhola,
contempla os aviões republicanos, que vão para uma batalha
da qual já se sabe que será perdida, e comenta: "Nous sommes
foutus", como sempre.
@ - ccalligari@uol.com.br
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