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CARLOS HEITOR CONY
Deus e as coisas
Sou um padre e acabei de descobrir que não sei o que é amar a Deus sobre todas as coisas
A TARDE em que padre Mateus
invadiu o seu quarto, olhos
excitados. Como se tivesse febre ou tentação da carne. Padre Lucas assustou-se com aquele rosto
congestionado, as mãos crispadas.
- Que foi, padre?
- Padre Lucas, o senhor sabe o
que é amar a Deus sobre todas as
coisas?
- Como?!
- Amar a Deus sobre todas as coisas. O senhor sabe o que é isso?
- Meu filho, isso é o primeiro
mandamento da lei de Deus. Qualquer garoto do catecismo sabe isso!
O coadjutor olhou-o sério:
- Padre, pense bem em minha
pergunta: o senhor sabe o que é
amar sobre todas as coisas? O que
significa "sobre todas as coisas"?
- Bem, eu sou um simples padre,
sem instrução, já faz muito tempo
que não abro um livro e já estou longe de meus estudos. Aliás, fui aluno
medíocre, estudei porcamente a filosofia e, quanto à teologia, aprendi
e procurei guardar o necessário para
não fazer feio. Depois, vieram os
compromissos, a paróquia, as necessidades materiais do culto -não tive
tempo nem vontade para me ocupar
com esses problemas. Mas acredito
que sua dúvida é infundada, o mandamento é claro, bem enunciado,
qualquer criança entende isso. Já
dei milhões de aulas de catecismo e,
quanto a este mandamento, nunca
uma criança me interrogou.
- Mas eu não sou criança. Sou um
padre. E acabei de descobrir que não
sei o que é amar a Deus sobre todas
as coisas. Os demais mandamentos
são óbvios, simples, envolvem terceiros, configuram um comportamento social ao mesmo tempo que
um comportamento religioso: não
furtar, não matar, não pecar contra a
castidade, honrar pai e mãe, não levantar falso testemunho são mandamentos explícitos, simples, basta
o enunciado para compreender a
sua finalidade. Mas o primeiro mandamento, que venho repetindo desde o catecismo, maquinalmente, da
boca para fora: amar a Deus! O que é
que é amar a Deus! E o resto? O "sobre todas as coisas"?
Padre Lucas olhou o coadjutor
com ódio. Tanto trabalho para realizar, tantas ocupações e preocupações, e vinha aquele rapaz, mal saído
da adolescência, levantar um problema inútil e ridículo!
- Padre Mateus, recebi o senhor
em minha casa como auxiliar. E não
como aluno. Se existem tantas dúvidas em sua consciência, fale com o
cardeal, peça para voltar ao seminário, estudar mais teologia, aprofundar-se nos livros e mestres. Sou um
simples padre, um humilde vigário,
minha função, minha obrigação, é
lutar contra o Demônio, impedir
que ele me roube as almas que me
foram confiadas. É assim que eu entendo a minha missão de sacerdote e
de homem. Deus destinou-me a isso
e para isso aqui estou, com minhas
fraquezas e limitações. O resto não
me interessa.
- Padre -o coadjutor era teimoso
e insistia-, o senhor já absolveu algum penitente do pecado de não ter
amado a Deus sobre todas as coisas?
- Todo o pecador contra qualquer
mandamento da lei divina ou natural é um violador deste mandamento. Não há necessidade de ninguém
se ajoelhar aos meus pés e confessar:
"Pequei, padre, pela falta de amor a
Deus!". É uma decorrência, uma dedução. O pecado, em si mesmo, é um
ato consciente e voluntário do desamor a Deus.
Lucas quis encerrar a questão:
- Escute, padre. Não estou aqui
para ensinar o rosário a ninguém,
muito menos a um sacerdote mais
culto que eu. Se o senhor tem tantas
dúvidas, o remédio é reavaliar a sua
vocação. Qualquer ordem religiosa
teria prazer em receber um padre já
ordenado. Não somos contemplativos, padre. Vivemos em contato com
o mundo, com a miséria dos homens, com as ciladas do Demônio,
com os perigos, com as necessidades. A santificação de nossa alma é
quase secundária. Somos destinados a salvar às vezes com grave risco
de nossa própria salvação. Isso fica
por conta de Deus. Ele acertará as
contas conosco e levará tudo isso em
consideração. Faço o que posso,
cumpro os meus deveres, dou este
duro danado para manter a minha
igreja. Já estou nisso há 30 e tantos
anos. É tarde para mudar de vida e
de estilo. Mas o senhor é moço, se
acha que o seu lugar é uma ordem
contemplativa, ainda há tempo. De
minha parte, não colocarei embaraço nenhum. O senhor é livre.
- Obrigado, padre Lucas, mas o
senhor não me entendeu. No fundo,
admiro o senhor. Mas ninguém poderá me ajudar.
- Deus pode ajudar, meu filho.
- Padre, ouça bem: ninguém pode
me ajudar. Sobre todas as coisas, isso: ninguém pode ajudar realmente
a ninguém.
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