São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 2008

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Entrevista Tom Stoppard

"O que me interessa é o cheiro do teatro"

Dramaturgo afirma que prefere a atmosfera e o clima de amizade de um ensaio ao debate de idéias: "O caráter físico, corpóreo e prático é o que me atrai'

Para Stoppard, peça não é resultado do desejo de fazer afirmação sobre questão política ou filosófica; sua função primordial é divertir

Max Nash/France Presse
Stoppard, autor de peças como 'Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos'


RAFAEL CARIELLO
DE LONDRES

"Sou um escritor livre numa sociedade livre", diz o senhor de cabelos grisalhos arrepiados e óculos de leitura pendentes no nariz. Minutos antes, com um cigarro na boca, ele admirava com interesse a vitrine de uma loja de sanduíches caprichados, servidos para jovens ricos e engravatados no coração do distrito financeiro londrino.
O lugar, que acaba de abrir, pertence ao filho de Tom Stoppard, 70, um dos mais importantes dramaturgos de língua inglesa vivos. É lá, apoiado em balcão de cimento ainda empoeirado, que ele fala à Folha.
Dono de quatro prêmios Tony (o mais importante do teatro americano), um Oscar (pelo roteiro de "Shakespeare Apaixonado") e de opiniões e textos que causam controvérsia há mais de quatro décadas, Stoppard viaja em breve para o Brasil, onde nunca esteve, para participar da Flip (Festa Literária Internacional de Parati).
Nos anos 70, escreveu peças críticas à falta de liberdade na União Soviética e em países comunistas do Leste Europeu. Na década seguinte, elogiou Margaret Thatcher e dedicou peça ao historiador conservador britânico Paul Johnson.
Stoppard diz ter sempre preferido "uma idéia de liberdade individual" a "princípios coletivos" e se apresenta como um "libertário tímido". O que ele afirma atraí-lo no teatro, no entanto, é menos o debate de idéias ("numa boa peça, todo mundo tem razão") do que a "atmosfera", "o clima de amizade num ensaio", o "caráter físico, corpóreo e prático".  

FOLHA - Em "Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos", os personagens se questionam sobre o sentido dos seus atos. Ou tudo o que fazem já está previamente escrito por um dramaturgo, ou cada seqüência de eventos é resultado de mero acaso. De toda forma, o sr. parece não deixar muita margem de manobra para o indivíduo, certo?
TOM STOPPARD
- É uma leitura válida, mas é a sua. Uma peça não é o resultado do desejo do escritor de fazer uma afirmação sobre uma questão política ou filosófica. Não é um ensaio. Sua função primordial não é explorar idéias, mas divertir, contar uma história.
O que me interessava na época era um problema meu, que eu fiz ser o desses personagens também: como ocupar o tempo. Nada parece acontecer, de repente algo acontece que parece trazer um pouco mais de informação sobre a situação, e por aí vai. "Hamlet" contém esses dois personagens que de repente se vêem mortos, sem saber por quê. A platéia sabe, mas ninguém conta a eles o que está acontecendo, e o que lhes contam não é verdadeiro. Isso me pareceu um bom tema para uma comédia. Não tenho um programa.
Mas minhas últimas peças são diferentes de "Rosencrantz e Guildenstern". Você não poderia escrever uma peça como "Rock'n'Roll" sem tomar consciência de uma certa realidade social e fazer algum comentário sobre ela.

FOLHA - Esses dois tipos de peça, umas mais "existencialistas", outras mais "políticas", não se relacionam de alguma forma?
STOPPARD
- É uma questão absolutamente válida, mas a verdade é que não tenho nenhum interesse pela resposta. Eu não volto ao meu trabalho com intenções analíticas. O que me interessa é o cheiro do teatro, por exemplo. Eu gosto da atmosfera, do clima de amizade num ensaio. O caráter físico, corpóreo e prático do que chamamos teatro é o que me atrai.

FOLHA - Em suas peças mais "políticas", o sr. parece cético em relação a qualquer forma de utopia...
STOPPARD
- Sim, isso é verdade.

FOLHA - O que era bastante diferente do modo como muitos outros dramaturgos viam o mundo nos anos 60 e 70.
STOPPARD
- Sim, sempre preferi uma idéia de liberdade individual a princípios "coletivos". Mas não é tão simples assim. É óbvio que a liberdade individual depende de alguma forma de solidariedade coletiva, e que deve haver alguma forma de equilíbrio aí. E eu também mudei, não só quanto às minhas idéias. Quando comecei era mais tímido, mais comedido na exposição de meus sentimentos. "Rosencrantz e Guildenstern" é uma peça bastante cerebral. Demorou ainda uns 15 anos até que eu começasse a incluir coisas como relacionamentos amorosos. Fiquei menos defensivo, embora não seja um sujeito propriamente sociável, e continue preferindo ficar sozinho.
O que digo, no entanto, vale para mim, autor inglês escrevendo no Reino Unido. As coisas eram e são diferentes para escritores da antiga Tchecoslováquia ou da atual Belarus, uma ditadura. Sou um escritor livre numa sociedade livre.

FOLHA - Nos anos 60 e 70, muitos de seus colegas tinham uma opinião diferente sobre a sociedade em que você vive. Para eles, mesmo o Ocidente não era uma sociedade livre, pelo menos não para todos. Essa foi durante muito tempo uma visão praticamente hegemônica. Isso lhe trouxe alguma dificuldade?
STOPPARD
- Não. As pessoas me viam como alguém que não se juntava ao coro. Mas não tive grandes dificuldades, porque no Reino Unido você não tem dificuldades por expressar suas opiniões. Nessa época, eu me irritava às vezes com pessoas da minha geração, artistas, que faziam ataques fáceis à sociedade inglesa, falando sobre censura ou coisas assim. Eu sabia o que era a censura de verdade, por causa da minha ligação com o Leste Europeu. Sempre odiei o fato de chamarem policiais ingleses de "porcos fascistas".
Eles não faziam a menor idéia do que era o fascismo de verdade. Eram slogans fáceis. Não me lembro o autor, mas eu gosto dessa citação de que "numa boa peça, todo mundo tem razão". Como em Tchekov, por exemplo. E nós estamos numa boa peça, eu e você.

FOLHA - O sr. já se definiu como um "libertário tímido". Por que tímido?
STOPPARD
- Tenho uma inclinação intelectual, pessoal, para a defesa da não-intervenção com o indivíduo, contrária ao seu controle. Mas, como indivíduo, não tiro um proveito amplo e extrovertido de minhas liberdades pessoais. Sou tímido.


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