São Paulo, terça-feira, 23 de junho de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Muros de ferro, palavras de aço


No fundo, Obama acredita na bondade de um regime que mente à sua própria população

O MUNDO dá muitas voltas. Uns anos atrás, quando alguém falava da "agenda Bush", os sábios faziam piada. Agenda Bush? O plano consistia em defender a democracia, a liberdade e o respeito pelos direitos humanos nas mais variadas regiões do globo, de forma a evitar a existência de estados párias, exportadores do terrorismo e, claro, agentes da opressão para os seus próprios povos.
Alguns anos passados, toda a gente clama pela agenda Bush, ainda que o seu nome não seja pronunciado e o pobre George esteja, algures no Texas, a comer tartes de maçã. Basta prestar atenção à telenovela iraniana e aos textos que os mais ferozes anti-bushistas escrevem a respeito. Eles parecem mais neoconservadores do que os próprios neoconservadores. Mas o que mudou no Irã?
Paradoxalmente, pouca coisa e muita coisa: há trinta anos que o Irã é uma teocracia violenta e repressiva, dominada por um grupo de clérigos que decide a política interna e externa do país. Verdade: existem eleições regulares. Mas as eleições são controladas pela teocracia, que escolhe os candidatos e depois escolhe o candidato vencedor, em total desrespeito pela vontade popular.
Esse ano, algo mudou: uma população crescentemente jovem, urbana, educada e com sede de Ocidente resolveu contestar, não apenas a fraude eleitoral mas a própria legitimidade do regime. Os sábios podem desprezar os valores da agenda Bush. Mas os iranianos que vão para as ruas são a prova tangível e audível de que essa agenda não está morta nem enterrada.
Infelizmente, é pouco provável que alguém os ouça.
Para começar, e mesmo que Mir-Hossein Mousavi fosse o vencedor, ele não é o Barack Obama da Pérsia, disposto a inaugurar um novo capítulo de abertura ao Ocidente e de concessão de liberdades individuais a todos os iranianos. Mousavi, antigo premiê de Khomeini, é um revolucionário de formação, responsável pela execução de milhares de opositores políticos e um entusiasta do programa nuclear do país. Na imprensa internacional, Mousavi é apresentado como arquiteto, poeta, provavelmente trapezista ou palhaço nas horas vagas. Mousavi é o contrário dessa imagem bucólica que corre no mundo. E os iranianos que gritam nas ruas por Mousavi gritam apenas por uma substituição de carrascos.
Mas se Mousavi não é o Barack Obama da Pérsia, que dizer do Barack Obama real?
Até o momento, o presidente americano persiste no seu silêncio ensurdecedor. E, quando quebra esse silêncio, é para mostrar preocupação com a violência e alguma esperança de que os votos sejam recontados pelo regime iraniano.
Os apoiantes de Obama aplaudem a contenção do presidente. E recordam que qualquer outra palavra só serviria para reforçar a violência do regime e enfraquecer a causa dos manifestantes. Regimes totalitários sempre precisaram de fantasmas externos, certo?
Errado. O regime não precisa das palavras de Obama para culpar o Ocidente pelas tragédias internas do Irã. Pela boca do Líder Supremo, Khamenei; ou pela boca do presidente "reeleito", Ahmadinejad, os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha já estão sendo apontados como os principais instigadores do ódio e dos confrontos. Obama não precisa falar para que os outros falem dele.
Resta a esperança otimista do presidente americano de que o seu silêncio será tido em conta no momento de negociar o dossiê nuclear iraniano. Obama acredita que, depois de anos consecutivos de fracassos diplomáticos, a sua bondosa pessoa irá convencer o regime a aceitar a existência de Israel e a desistir da bomba nuclear. No fundo, Obama acredita na bondade de um regime que mente à sua própria população; que manipula os resultados eleitorais; que prende e espanca barbaramente os seus cidadãos.
Longe de mim sugerir a aplicação da agenda Bush até às suas últimas consequências. Enviar o exército para Teerã não é opção de gente sensata. Muito menos alguns operacionais da CIA, como sucedeu na década de 50, com as consequências conhecidas.
Mas existem palavras que devem ser ditas para que milhares de pessoas, arriscando a própria vida, saibam que o mundo as apoia. O passado é o único guia que temos. E o passado ensina que não foram apenas as contradições econômicas dos regimes comunistas que levaram às suas quedas. Reagan, Thatcher e mesmo João Paulo 2º nas suas viagens pelo Leste da Europa mostraram como os muros de ferro não resistem às palavras de aço.

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