|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
A persistência da memória
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
O roteirista Charlie Kaufman é um sujeito curioso.
Leu uma frase e um poema e deles
escreveu um filme. Não somente
um filme, o filme, o melhor do
ano, um dos grandes da década.
De tempos em tempos aparece
alguém que ajuda a reinventar o
cinema, e é por isso que este sobrevive e se renova há cem anos.
A bola da vez é Kaufman, e o fato
de ele ser um roteirista, não um
diretor, fala muito sobre nossa
época, de blogs e sites, e-mails e
chats -todos meios textuais.
O norte-americano é o Metalingüístico de Hollywood, autor dos
roteiros mais desestruturados
que já chegaram às telas vindos
das colinas a oeste de Los Angeles.
Fala do cinema dentro do cinema,
deste em relação àquele e vice-versa, coloca-se nos filmes e inventa um irmão gêmeo co-autor,
que fez com que a Academia indicasse pela primeira vez um personagem fictício ao Oscar (2003).
São deles "Quero Ser John Malkovich" (1999) e "Adaptação"
(2002, em "parceria" com "Donald Kaufman"), ambos colaborações felizes com o diretor Spike
Jonze, e o menos conhecido "A
Natureza Quase Humana" (2001),
dirigido pelo mesmo Michel
Gondry deste "O Brilho Eterno de
uma Mente sem Lembrança".
Aqui, o primeiro texto que o
inspirou foi o poema "Eloisa to
Abelard", 366 versos escritos por
Alexander Pope (1688-1744), sobre o caso verídico de um teólogo
de 38 anos com a pupila de 18. De
lá, sacou "Feliz é o destino da inocente vestal/ Esquecida pelo mundo que ela esqueceu/ Brilho eterno da mente sem lembrança!".
O segundo é uma frase do filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900): "Abençoados os que
esquecem, porque aproveitam até
mesmo seus equívocos".
A unir os textos, está o amor, a
memória e a memória do amor.
Há duas maneiras de contar o
enredo que daí saiu. A primeira é
a linear, que o leitor não encontrará no filme. A segunda é tal como
se apresenta na tela, mais caleidoscópica e interessante. A linear:
Joel (Jim Carrey) conhece Clementine (Kate Winslet) num
churrasco de amigos numa praia.
Apaixonam-se de cara, mas ele é
contido, tímido e aborrecido, ela é
impetuosa, esquentada e dada a
excessos, e logo os dois brigam.
A garota ouve falar então de
uma empresa, Lacuna Inc., que
promete apagar lembranças
ruins. O cérebro do cliente é mapeado enquanto ele vê objetos
que o fazem lembrar do que ele
quer ver esquecido. Identificados,
os pontos dolorosos são bombardeados por laser e puf!, se vão.
Na fila de espera, há uma senhora segurando objetos de seu cachorro morto, um torcedor frustrado de um time perdedor, solitários do Dia dos Namorados...
Quando Joel descobre que a ex-namorada se submeteu ao apagão, resolve fazer o mesmo. No
meio do processo, arrepende-se e
tenta, de dentro de sua memória
sendo apagada, lembrar-se de seu
amor eterno. Para tanto, usa artifícios, como conduzir a amada
para memórias antigas, de infância, quando ela ainda não existia.
Enquanto isso, o autor da invenção (Tom Wilkinson) vai revelar um segredo à sua jovem assistente (Kirsten Dunst), que tem
um caso com seu colega (Mark
Ruffalo), cujo amigo inescrupuloso (Elijah Wood) se aproveita de
uma das clientes, Clementine.
(Charlie Kaufman deve rir das
tentativas fúteis dos jornalistas
em resumir seu enredo.)
Não se deixe levar pelo preconceito ao avesso, de que uma produção tão bem-feita, vinda de
Hollywood, com cenários caros e
um ator mais conhecido por seu
trabalho em comédias, não pode
ser revolucionária. É.
Brilho Eterno de uma Mente
Sem Lembranças
Eternal Sunshine of a Spotless Mind
Produção: EUA, 2004
Direção: Michel Gondry
Quando: a partir de hoje nos cines Frei
Caneca Unibanco Arteplex, Jardim Sul,
Tamboré e circuito
Texto Anterior: Apagão Próximo Texto: Popload: O cover do ano; a música do ano Índice
|