|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Anos 70: Mona Lou, a Esfinge da Barra
A foto da moça virou logotipo de jornais e capa de revistas. Apareceu mais na televisão do que as deusas eletrônicas
fabricadas pelas telenovelas. Os
entendidos em arte a acharam
parecida com a Mona Lisa, apesar da diferença fundamental:
enquanto a Gioconda, de Leonardo da Vinci, tem os lábios finos e o
sorriso enigmático (os críticos garantem que ela sorri daquele jeito
por causa do mau hálito), Lou
possuia uma boca sensual, grossa,
sem mistérios. "Um delírio de carne em feitio de lábios que parecem ventosas, boca de polvo", segundo a opinião de um cronista
já morto, mas ainda citado.
Todos admitiram que a moça se
parecia com a Mona Lisa pela
postura, a cabeça emoldurada pelos cabelos negros e finos, o rosto
cheio de ângulos para ser olhado,
amado, detestado e, conforme o
caso, decifrado. A moça atraiu a
cólera de uma cidade inteira. Se
passasse pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, entre as
ruas Siqueira Campos e Constante Ramos, às 4 horas da tarde de
um dia comum, seria devorada a
dentadas por homens, mulheres e
por estropiados que, naquele trecho, em suas cadeirinhas de roda,
vendem pentes, espelhinhos e lenços.
Dois rapazes haviam morrido
por causa dela ou através dela
-ou as duas coisas ao mesmo
tempo. Não é todo dia que, na
pasmaceira da classe média habituada à ficção comportada da
TV, cai um banquete desses, uma
anti-heroína em carne e osso,
mais osso do que carne. Como dizia Spencer Tracy a respeito de
Katherine Hepburn, "de pouca
carne, mas de primeira".
Durante 24 anos, Maria de
Lourdes Leite de Oliveira andou
anonimamente pela cidade, atropelou um homem na avenida
Presidente Vargas, freqüentou as
praias, os bares, os hotéis de alta
rotatividade, os bancos (também
de rotatividade bastante alta), as
butiques, os colégios, os coletivos,
as lanchonetes e era apenas um
rosto na multidão. Sua malignidade, se é que existia, não foi percebida. Sua esquisita beleza, mais
tarde cantada em prosa e verso
nos segundos cadernos dos jornais, não impressionava a ninguém, exceto às suas vítimas. Resumindo: Maria de Lourdes era
uma moça simples, de camuflados encantos e de charme clandestino que só se revelavam na
hora e diante de quem ela quisesse. Sozinha, em sua frágil silhueta
de ninfa cabocla, provou mais
uma vez que a mulher é quem faz
e escolhe o homem.
A dar crédito aos testemunhos
deixados pelos dois rapazes assassinados, bastou que ela telefonasse e eles foram correndo ao encontro fatal, em que a abelha rainha,
a "appe regina" do filme de Marco Ferreri, mais uma vez cumpriria o seu terrível dever de fêmea. E
não lhe adivinharam o segredo
inscrito na fronte.
Maria de Lourdes nasceu no
Recife por acaso. A mãe estava de
viagem para o Rio, o navio enguiçou no porto e teve de passar uns
dias na capital pernambucana.
Não fosse isso, ela teria nascido
nas águas, como Iara, a mesma
que fascinou Macunaíma e o comeu com sua pérfida boca. A infância foi normal, sem lances de
importância. O pai, militar de
profissão e homem simples por
necessidade, vivia em andanças
pelo país, servindo em diversos
Estados, com certa fixação no
Norte. Nunca teve comissões importantes. Arrastou a sua carreira
sem brilho, mas sem falhas graves. A mãe compunha em suas linhas básicas a figura e o mito da
mulher de militar: caseira e dedicada aos filhos, suportando os encargos de administrar sozinha o
lar por ocasião dos freqüentes
deslocamentos do marido.
Lou tinha irmãs; ela é a mais
nova, mas não chegou a se amarrar nelas. Viveu a infância solitariamente. Gostava de bichos, de
terra, de mato. Com o tempo,
aperfeiçoando a solidão de menina, adquiriu hábitos estranhos,
que a levariam a praticar um tipo
de ocultismo autodidata, conversando com sombras, deslocando o
pensamento através do tempo e
do espaço, tendo visões e premonições. Isso acontece na infância
e, às vezes, ao longo da vida com
muita gente boa.
Adquiriu habilidades no setor
das prendas domésticas: dominava agulha e linha, era capaz de
cortar um vestido. Seu guarda-roupa traía a manufatura caseira. Até tornar-se moça, o melhor
lugar do mundo era sua casa. Depois continuou achando a mesma
coisa, mas valor mais alto se levantou: Lou gosta de amor. E, na
mesma medida, gosta de sexo.
Nascida em 1951, tinha a idade
da televisão brasileira, mas estava longe de ser um produto daquilo que os sociólogos chamam
de era da "comunicação de massa". Ela não apreciava os programas de TV, ia pouco ao cinema e,
em matéria de música, preferia
melodias bem definidas, sem
complicações. No fundo, gostava
mesmo é de filmes de Walt Disney, com muito colorido, muito
bichinho engraçadinho, paisagens arrumadinhas, tudo ao som
de "When You Wish upon a
Star", a canção que ganhou o Oscar de melhor música num ano
distante do passado.
Nos estudos, nunca foi brilhante, embora não fizesse feio. Levou
respeitáveis bombas, mas ia em
frente. Quebrou a cara no dia em
que fez um teste vocacional. Desde que os psicólogos inventaram
essa arapuca a mais, muita gente
termina paleontólogo, pensando
que é psicólogo ou vice-versa. Lou
fez os testes cujos resultados a levaram a um curso de engenharia
cartográfica. Até que lhe deu o estalo e ela mandou às favas aquela
especialidade e resolveu fazer belas artes, que estava mais de acordo com o seu temperamento e
possibilidades. Nesse meio-tempo, foi envolvida por um caso que
tomou o seu nome, que a obrigou
a trancar sua matrícula na Universidade do Estado da Guanabara.
E obrigou a sociedade a trancá-la na carceragem de Água Santa.
Texto Anterior: Anima Mundi: "Seremos tão bons quanto a Disney" Próximo Texto: Panorâmica - Debate: Especialistas discutem a alienação Índice
|