São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Anos 70: Mona Lou, a Esfinge da Barra

A foto da moça virou logotipo de jornais e capa de revistas. Apareceu mais na televisão do que as deusas eletrônicas fabricadas pelas telenovelas. Os entendidos em arte a acharam parecida com a Mona Lisa, apesar da diferença fundamental: enquanto a Gioconda, de Leonardo da Vinci, tem os lábios finos e o sorriso enigmático (os críticos garantem que ela sorri daquele jeito por causa do mau hálito), Lou possuia uma boca sensual, grossa, sem mistérios. "Um delírio de carne em feitio de lábios que parecem ventosas, boca de polvo", segundo a opinião de um cronista já morto, mas ainda citado.
Todos admitiram que a moça se parecia com a Mona Lisa pela postura, a cabeça emoldurada pelos cabelos negros e finos, o rosto cheio de ângulos para ser olhado, amado, detestado e, conforme o caso, decifrado. A moça atraiu a cólera de uma cidade inteira. Se passasse pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, entre as ruas Siqueira Campos e Constante Ramos, às 4 horas da tarde de um dia comum, seria devorada a dentadas por homens, mulheres e por estropiados que, naquele trecho, em suas cadeirinhas de roda, vendem pentes, espelhinhos e lenços.
Dois rapazes haviam morrido por causa dela ou através dela -ou as duas coisas ao mesmo tempo. Não é todo dia que, na pasmaceira da classe média habituada à ficção comportada da TV, cai um banquete desses, uma anti-heroína em carne e osso, mais osso do que carne. Como dizia Spencer Tracy a respeito de Katherine Hepburn, "de pouca carne, mas de primeira".
Durante 24 anos, Maria de Lourdes Leite de Oliveira andou anonimamente pela cidade, atropelou um homem na avenida Presidente Vargas, freqüentou as praias, os bares, os hotéis de alta rotatividade, os bancos (também de rotatividade bastante alta), as butiques, os colégios, os coletivos, as lanchonetes e era apenas um rosto na multidão. Sua malignidade, se é que existia, não foi percebida. Sua esquisita beleza, mais tarde cantada em prosa e verso nos segundos cadernos dos jornais, não impressionava a ninguém, exceto às suas vítimas. Resumindo: Maria de Lourdes era uma moça simples, de camuflados encantos e de charme clandestino que só se revelavam na hora e diante de quem ela quisesse. Sozinha, em sua frágil silhueta de ninfa cabocla, provou mais uma vez que a mulher é quem faz e escolhe o homem.
A dar crédito aos testemunhos deixados pelos dois rapazes assassinados, bastou que ela telefonasse e eles foram correndo ao encontro fatal, em que a abelha rainha, a "appe regina" do filme de Marco Ferreri, mais uma vez cumpriria o seu terrível dever de fêmea. E não lhe adivinharam o segredo inscrito na fronte.
Maria de Lourdes nasceu no Recife por acaso. A mãe estava de viagem para o Rio, o navio enguiçou no porto e teve de passar uns dias na capital pernambucana. Não fosse isso, ela teria nascido nas águas, como Iara, a mesma que fascinou Macunaíma e o comeu com sua pérfida boca. A infância foi normal, sem lances de importância. O pai, militar de profissão e homem simples por necessidade, vivia em andanças pelo país, servindo em diversos Estados, com certa fixação no Norte. Nunca teve comissões importantes. Arrastou a sua carreira sem brilho, mas sem falhas graves. A mãe compunha em suas linhas básicas a figura e o mito da mulher de militar: caseira e dedicada aos filhos, suportando os encargos de administrar sozinha o lar por ocasião dos freqüentes deslocamentos do marido.
Lou tinha irmãs; ela é a mais nova, mas não chegou a se amarrar nelas. Viveu a infância solitariamente. Gostava de bichos, de terra, de mato. Com o tempo, aperfeiçoando a solidão de menina, adquiriu hábitos estranhos, que a levariam a praticar um tipo de ocultismo autodidata, conversando com sombras, deslocando o pensamento através do tempo e do espaço, tendo visões e premonições. Isso acontece na infância e, às vezes, ao longo da vida com muita gente boa.
Adquiriu habilidades no setor das prendas domésticas: dominava agulha e linha, era capaz de cortar um vestido. Seu guarda-roupa traía a manufatura caseira. Até tornar-se moça, o melhor lugar do mundo era sua casa. Depois continuou achando a mesma coisa, mas valor mais alto se levantou: Lou gosta de amor. E, na mesma medida, gosta de sexo.
Nascida em 1951, tinha a idade da televisão brasileira, mas estava longe de ser um produto daquilo que os sociólogos chamam de era da "comunicação de massa". Ela não apreciava os programas de TV, ia pouco ao cinema e, em matéria de música, preferia melodias bem definidas, sem complicações. No fundo, gostava mesmo é de filmes de Walt Disney, com muito colorido, muito bichinho engraçadinho, paisagens arrumadinhas, tudo ao som de "When You Wish upon a Star", a canção que ganhou o Oscar de melhor música num ano distante do passado.
Nos estudos, nunca foi brilhante, embora não fizesse feio. Levou respeitáveis bombas, mas ia em frente. Quebrou a cara no dia em que fez um teste vocacional. Desde que os psicólogos inventaram essa arapuca a mais, muita gente termina paleontólogo, pensando que é psicólogo ou vice-versa. Lou fez os testes cujos resultados a levaram a um curso de engenharia cartográfica. Até que lhe deu o estalo e ela mandou às favas aquela especialidade e resolveu fazer belas artes, que estava mais de acordo com o seu temperamento e possibilidades. Nesse meio-tempo, foi envolvida por um caso que tomou o seu nome, que a obrigou a trancar sua matrícula na Universidade do Estado da Guanabara.
E obrigou a sociedade a trancá-la na carceragem de Água Santa.


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