São Paulo, sábado, 23 de julho de 2005

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Sai no Brasil volume de cartas de Francis Scott Fitzgerald e Zelda; brasileiros avaliam valor literário de seus escritos de amor

Correio sentimental

Associated Press
F. Scott Fitzgerald com Scottie, sua filha, e Zelda, sua mulher, em navio que os levou aos EUA, em 1926


EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

O que têm em comum Zelda e Francis Scott Fitzgerald, Zélia Gattai e Jorge Amado, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna, Livia e Luiz Alfredo Garcia-Roza, Heloísa Seixas e Ruy Castro? Em algum momento de suas vidas, entre os arroubos dos primeiros flertes e o pesar nos eventuais distanciamentos, esses casais de escritores trocaram cartas de amor. Correspondências que encerravam não somente declarações apaixonadas mas também recortes do cotidiano, reflexões sobre o ofício e suas obras, cenas de casamento.
Algumas dessas cartas têm um destino parecido com as de Zelda e F. Scott Fitzgerald, compiladas em "Querida Zelda, Querido Scott" (Companhia das Letras), que chega às livrarias no dia 28 de julho. Zélia Gattai, por exemplo, está garimpando as cartas que trocou com seu Amado, ao longo de 56 anos de casamento, para reuni-las num livro.
"Fomos de um tempo em que telefonemas ou telegramas eram muito raros. O Jorge viajava muito e me mandava cartas, com notícias dos livros que estava escrevendo, coisas que aconteciam em torno dele. Eu falava das crianças etc. Eram conversas longas, sempre românticas", conta Gattai, que lamenta a perda de poemas enviados por carta a ela, reunidos por um editor, que nunca as publicou, e de outras cartas subtraídas pela polícia poucos antes do exílio do casal. "É algo com que não posso me conformar até hoje", conta Zélia.
Casados há mais de 30 anos, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna viram seu correio amoroso tomar corpo somente depois do casamento. Boa parte da correspondência foi feita durante as viagens dele, para lecionar nos Estados Unidos ou na França.
"Não são cartas literárias. Havia até um cuidado para falar mais com a alma do que com o estilo", pondera Colasanti, que guardou todas as cartas trocadas. "Se um dia serão publicadas, isso depende de nossas filhas. Quando as fiz, não pensava em construir um belo texto. Eram apenas cartas para o meu amor."
Sant'Anna, por sua vez, vê a qualidade literária daqueles escritos, de que guarda dois maços: Colasanti tem, diz ele, entre outras virtudes, a de relatar bem o cotidiano, de expressar bem seus sentimentos.
"De uns tempos para cá comecei a guardar uns bilhetes que Marina deixa para mim. São rápidas palavras que marcam coisas do cotidiano, despretensiosamente belos", diz Sant'Anna, que lembra que, no seu último livro, o poema "Chegando em Casa" existe por conta de um daqueles bilhetes.
Os bilhetes também são a atual forma de correspondência de Lívia e Luiz Alfredo Garcia-Roza, que trocaram cartas de amor no início do casamento, durante uma viagem dela à Suíça, em 1979. Falavam de saudades, recorda Lívia, que as guarda até hoje.
"As nossas cartas não dariam um livro porque são em pequeno número e se resumem à curta temporada em que estive fora", diz a escritora, casada com Garcia-Roza há 27 anos.
A distância também foi estopim da correspondência amorosa entre Heloísa Seixas, que morava no Rio, e Ruy Castro, que vivia em São Paulo, quando se conheceram. Há 15 anos juntos, os escritores hoje vivem no mesmo bairro, mas moram em apartamentos separados.
"Em outros tempos, certamente renderia muitas cartas. Mas infelizmente tudo isso aconteceu na era do telefone e nunca trocamos cartas de amor", lamenta Seixas. "Mesmo depois do e-mail, acho que eu não poderia falar em cartas de amor. Trocamos e-mails todos os dias, mais de um até, mas são meras trocas de idéia, nada muito romântico."
A escritora recorda, no entanto, uma curiosa história da era pré-e-mail, quando o casal ainda trocava faxes. Em São Paulo, Castro ouviu sua máquina apitar e registrar, no visor, o nome da mulher. Nenhum fax saiu, mas sim um papel com a hora da mensagem e o nome dela impresso.
"Ruy me ligou, e eu não tinha tentado passar fax algum, pois estivera trancada numa reunião (mas estivera, de fato, pensando nele)", conta Seixas. "Achamos meio sobrenatural e por muito tempo guardamos aquele pedaço de papel com a data, a hora e meu nome. Só que, como era papel de fax, um dia ele também apagou, o que nos dá bem uma idéia de como as cartas de amor são voláteis nos tempos pós-modernos."
Marina Colasanti também lamenta que o e-mail tenha substituído as cartas, especialmente as manuscritas:
"São um material riquíssimo sobre a maneira como as pessoas se relacionam em diferentes épocas", diz a escritora.
Livia Garcia-Roza diz que as cartas de amor podem ter grande valor literário, dependendo dos autores. Como exemplo, ela cita Lillian Helmann e Dashiel Hammett, Simone de Beauvoir e Nelson Algren, Rainer Maria Rilke e Lou-Andreas Salomé. E defende que a carta mais querida de sua correspondência com Garcia-Roza ainda está por ser escrita.
Revolvendo o correio com Amado, Gattai lembra de um último manuscrito do marido para ela: em 2001, último ano de sua vida, e com problemas de visão, o escritor era docemente desafiado pela mulher a continuar escrevendo. Certa vez, rabiscou uma dedicatória: "A Zélia, um beijo ardente". Gattai não esconde a vontade de escrever de novo ao Amado. E dizendo: "Volte, pelo amor de Deus".


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