São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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FERREIRA GULLAR

E durma com um sonho desses


Não entendo de sonhos, e o pouco que sei é que uma função sua é evitar que o sonhador acorde

SONHEI QUE torturava o príncipe Maurício de Nassau. Só que, em meu sonho, ele não tinha bigodes nem barbas, como se vê no retrato, nem parecia com ele; era, na verdade, um bebê enorme, de cabeça pelada, gordo, sem nenhuma aparência física com o príncipe holandês. E, não obstante, era ele.
Estávamos os dois numa cama; ele, encostado na cabeceira, despido como um bebê, enquanto eu, sentado em sua frente, a certa distância, dava-lhe beliscões e ferroadas com um instrumento comprido de metal. Nassau tratava de se defender, empurrando o instrumento com as mãos, e eu, então, aproveitava para beliscar-lhe os dedos.
Reinava ali um grande silêncio, pois o príncipe fazia caretas de dor, mas não soltava um único gemido, e eu apenas sorria, sadicamente, pertinaz em minha tarefa perversa, sem emitir nenhum som.
Era, assim, tudo muito estranho, cruel, mas sem morbidez. Dizer que sonho é estranho equivale a não dizer nada, ainda que cada sonho seja estranho à sua maneira. Não sei o que diria desse sonho um psicanalista, muito embora não o esteja expondo aqui publicamente com o propósito de vê-lo analisado. Aliás, não sei com que propósito o faço, a não ser por considerá-lo bizarro demais, sadicamente engraçado. É como se o contasse aos amigos.
Talvez o psicanalista, se freudiano, procure descobrir qual impulso subconsciente nele se manifesta de maneira disfarçada: uma tendência homossexual talvez se expressaria naquela brincadeira sádica que ocorria sintomaticamente numa cama. Mas com um bebê? Seria eu tão tarado a esse ponto?
É verdade que o bebê era de fato o príncipe Maurício de Nassau, ou seja, um homem disfarçado de bebê para ocultar o desejo homossexual do sonhador... Não, prefiro a interpretação de um psicanalista junguiano, para quem os sonhos não têm que obrigatoriamente ocultar uma intenção sexual, mas qualquer outro significado, podem ser desde fantasias incongruentes até premonições advindas do inconsciente individual ou coletivo.
Quanto a mim, não consigo decifrar nada, captar uma intenção secreta. Estou apenas perplexo, já que não sou pernambucano e que, nos últimos dez anos, nada li sobre Nassau nem sobre a história colonial pernambucana; são temas fora de qualquer cogitação minha neste momento. Então por que essa, agora, de Nassau nu na minha cama e por que Nassau se se tratava de um bebê gordo, cabeçudo e rosado? Pensando bem, isso de cabeçudo pode ter alguma coisa a ver com ele...
Estávamos os dois na cama, ele nu e eu vestido, embora não houvesse no sonho nada que o indicasse, mas era assim, já que nos sonhos as coisas são o que são mesmo que não o vejamos. O bebê holandês estava nu, mas não lhe via os "países baixos", o que me livra da fatal interpretação freudiana, que implicaria pedofilia, tão em moda ultimamente.
Não entendo de sonhos, e o pouco que sei é que uma de suas funções é evitar que o sonhador acorde; seria uma espécie de esperteza do nosso corpo, que, necessitando descansar, inventa uma mentira para continuar dormindo.
Eu mesmo já contei um sonho que ilustra bem essa tese: dormia quando o despertador tocou. Como estava cansado e não queria acordar, meu cérebro inventou que eu passeava numa caleça por um parque verde muito aprazível, e a campainha que ouvia não era do despertador, mas a sineta da caleça. E assim pude dormir mais alguns minutos.
Há sonhos que são reveladores da personalidade do sonhador. Tenho uma amiga que sonha sempre estar na aflitiva situação de guardar seus pertences na mala, na hora de embarcar, e não consegue fechá-la.
Eu também tenho sonhos recorrentes e, embora quase nunca sonhe coisas absurdas como essa de torturar Maurício de Nassau, aconteceu que, ontem à noite, sonhei com Fidel Castro! E veja como: estava eu trabalhando para o governo, quando um companheiro, chefe de um setor, decidiu ajudar o líder cubano, nomeando-o para certo cargo. Ao saber que o governador não estava de acordo, veio pedir-me que intercedesse junto a ele, em favor de Fidel. Concordei em fazê-lo, mas logo fui atropelado pela notícia de que o Ministério Público descobrira ter eu embolsado indevidamente R$ 5.000 de um contrato de gaveta superfaturado.
Entrei em pânico, temendo que a notícia vazasse e que eu fosse denunciado pela imprensa como corrupto, processado e preso. Felizmente, antes que isso ocorresse, acordei, são e salvo! O Brasil é mesmo a terra da impunidade


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