|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
E durma com um sonho desses
Não entendo de sonhos, e o pouco que sei é que uma função sua é evitar que o sonhador acorde
|
SONHEI QUE torturava o príncipe Maurício de Nassau. Só que,
em meu sonho, ele não tinha
bigodes nem barbas, como se vê no
retrato, nem parecia com ele; era, na
verdade, um bebê enorme, de cabeça pelada, gordo, sem nenhuma aparência física com o príncipe holandês. E, não obstante, era ele.
Estávamos os dois numa cama;
ele, encostado na cabeceira, despido
como um bebê, enquanto eu, sentado em sua frente, a certa distância,
dava-lhe beliscões e ferroadas com
um instrumento comprido de metal. Nassau tratava de se defender,
empurrando o instrumento com as
mãos, e eu, então, aproveitava para
beliscar-lhe os dedos.
Reinava ali um grande silêncio,
pois o príncipe fazia caretas de dor,
mas não soltava um único gemido, e
eu apenas sorria, sadicamente, pertinaz em minha tarefa perversa, sem
emitir nenhum som.
Era, assim, tudo muito estranho,
cruel, mas sem morbidez. Dizer que
sonho é estranho equivale a não dizer nada, ainda que cada sonho seja
estranho à sua maneira. Não sei o
que diria desse sonho um psicanalista, muito embora não o esteja expondo aqui publicamente com o
propósito de vê-lo analisado. Aliás,
não sei com que propósito o faço, a
não ser por considerá-lo bizarro demais, sadicamente engraçado. É como se o contasse aos amigos.
Talvez o psicanalista, se freudiano, procure descobrir qual impulso
subconsciente nele se manifesta de
maneira disfarçada: uma tendência
homossexual talvez se expressaria
naquela brincadeira sádica que
ocorria sintomaticamente numa cama. Mas com um bebê? Seria eu tão
tarado a esse ponto?
É verdade que o bebê era de fato o
príncipe Maurício de Nassau, ou seja, um homem disfarçado de bebê
para ocultar o desejo homossexual
do sonhador... Não, prefiro a interpretação de um psicanalista junguiano, para quem os sonhos não
têm que obrigatoriamente ocultar
uma intenção sexual, mas qualquer
outro significado, podem ser desde
fantasias incongruentes até premonições advindas do inconsciente individual ou coletivo.
Quanto a mim, não consigo decifrar nada, captar uma intenção secreta. Estou apenas perplexo, já que
não sou pernambucano e que, nos
últimos dez anos, nada li sobre Nassau nem sobre a história colonial
pernambucana; são temas fora de
qualquer cogitação minha neste
momento. Então por que essa, agora, de Nassau nu na minha cama e
por que Nassau se se tratava de um
bebê gordo, cabeçudo e rosado?
Pensando bem, isso de cabeçudo pode ter alguma coisa a ver com ele...
Estávamos os dois na cama, ele nu
e eu vestido, embora não houvesse
no sonho nada que o indicasse, mas
era assim, já que nos sonhos as coisas são o que são mesmo que não o
vejamos. O bebê holandês estava nu,
mas não lhe via os "países baixos", o
que me livra da fatal interpretação
freudiana, que implicaria pedofilia,
tão em moda ultimamente.
Não entendo de sonhos, e o pouco
que sei é que uma de suas funções é
evitar que o sonhador acorde; seria
uma espécie de esperteza do nosso
corpo, que, necessitando descansar,
inventa uma mentira para continuar dormindo.
Eu mesmo já contei um sonho que
ilustra bem essa tese: dormia quando o despertador tocou. Como estava cansado e não queria acordar,
meu cérebro inventou que eu passeava numa caleça por um parque
verde muito aprazível, e a campainha que ouvia não era do despertador, mas a sineta da caleça. E assim
pude dormir mais alguns minutos.
Há sonhos que são reveladores da
personalidade do sonhador. Tenho
uma amiga que sonha sempre estar
na aflitiva situação de guardar seus
pertences na mala, na hora de embarcar, e não consegue fechá-la.
Eu também tenho sonhos recorrentes e, embora quase nunca sonhe
coisas absurdas como essa de torturar Maurício de Nassau, aconteceu
que, ontem à noite, sonhei com Fidel Castro! E veja como: estava eu
trabalhando para o governo, quando
um companheiro, chefe de um setor,
decidiu ajudar o líder cubano, nomeando-o para certo cargo. Ao saber que o governador não estava de
acordo, veio pedir-me que intercedesse junto a ele, em favor de Fidel.
Concordei em fazê-lo, mas logo fui
atropelado pela notícia de que o Ministério Público descobrira ter eu
embolsado indevidamente R$ 5.000
de um contrato de gaveta superfaturado.
Entrei em pânico, temendo que a
notícia vazasse e que eu fosse denunciado pela imprensa como corrupto, processado e preso. Felizmente, antes que isso ocorresse,
acordei, são e salvo! O Brasil é mesmo a terra da impunidade
Texto Anterior: Bia Abramo Próximo Texto: Cinema: "Estamira" tem pré-estréia na terça Índice
|