São Paulo, segunda-feira, 23 de julho de 2007

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NELSON ASCHER

A poesia do século passado


Embora internacional, a poesia foi marcada pela coincidência crescente entre estética e política

AGORA, quando o século 20 é mesmo o "passado", já podemos lhe esmiuçar os detalhes com um mínimo de distanciamento.
Vários historiadores o chamam de "breve", pois seu ponto de partida teria sido uma pistola disparada no verão de 1914, em Sarajevo, e o final, o desmantelamento, em 1989, de um muro em Berlim, marcos estes que também servem para sua poesia, cujos contornos têm ficado cada vez mais nítidos.
Geograficamente, a poesia do século passado foi mais global ou internacional do que a de qualquer era anterior. Ainda assim, se bem que uma malha complexa de indivíduos e grupos, tendências e influências tenha se desenvolvido, tal intercomunicação ocorreu antes de modo unidirecional, com a própria idéia ocidental de poesia se espalhando pelas demais culturas. Um elemento central do Ocidente contagiou o restante: a coincidência crescente entre estética e política. Conforme a norma que vigorou, a ideologia de tal ou qual poeta era dedutível de suas escolhas estilísticas e vice-versa.
Quatro grandes orientações estético-políticas surgiram uma depois da outra e acabaram, para bem ou mal, convivendo fértil e conflituosamente, às vezes na mente de um mesmo autor.
A primeira, contemporânea da guerra de 1914-18, o "Pós-simbolismo Elitista" de Valéry e Rilke, Eliot e Pound, Pessoa, Kaváfis e António Machado, era conservadora inclusive na missão, assumida por seus criadores, de conservar o que fosse possível de uma civilização que viam à beira do desastre terminal.
A seguinte, a "Internacional Modernista" da qual participaram surrealistas franceses, nossos modernistas, a vanguarda hispano-americana, os futuristas russos e outros "engenheiros" de palavras e almas, acreditava, otimista, na redenção revolucionária da humanidade que, segundo o ponto de vista deles, principiara na Rússia em 1917.
A terceira, formada pelos "moralistas apocalípticos" que, principalmente na Europa centro-oriental, testemunharam a Segunda Guerra, o Holocausto e o comunismo, levou ao apogeu um realismo irônico nutrido pela resistência individual seja às grandes catástrofes, seja aos pequenos horrores cotidianos. Seus membros mais famosos são Hans Magnus Enzensberger, Heberto Padilla e Joseph Brodsky. A relevância dessa vertente, contudo, mostra-se, por exemplo, no fato de que três de seus participantes poloneses, Czeslaw Milosz, Zbigniew Herbert e Wislawa Szymborska já têm seus poemas vertidos para o inglês.
A última das tendências planetárias, a "Militância Antitudo", apesar de raízes anarquistas, ligou-se logo à "nova esquerda" dos anos 60 e floresceu no contexto da Guerra Fria e no caldo cultural da contracultura. Embora os poetas do movimento "beat" (Allen Ginsberg, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti) tenham se tornado seus representantes mais típicos, o espírito geral da tendência é o que predomina, há décadas, em toda parte.
As linhas gerais apresentadas acima não passam disso: linhas gerais, simplificações explicativas. E valer-se delas não implica desdenhar outras indagações tão plausíveis quanto interessantes. Uma possibilidade seria explorar certo retorno recente da poesia aos limites do Estado-nação. Daí que, só em inglês, pelo menos três maneiras distintas de escrever se associem a três países. Enquanto os americanos aderiam (e aderem) a todas as vanguardas, Phillip Larkin, na Inglaterra, as ignorava e irlandeses, como Seamus Heaney ou Derek Mahon, recorriam sem preconceito a qualquer recurso para chegar, afinal, a uma poesia "conversacional".
Convém, no entanto, enfatizar um elemento que, por si só, talvez tenha sido o principal responsável pelos sucessos poéticos do século passado.
Como nenhuma poesia existe em isolamento, equacionar impasses e desafios pressupõe um diálogo (amigável ou conflituoso, tanto faz), se não entre poetas, seguramente entre obras.
E, por mais politizados que fossem, os maiores poetas modernos raramente permitiam que paixões assim eclipsassem seu juízo crítico.
Isto não é, porém, nem o que se vê hoje, nem o que o futuro promete. Quase 100% dos poetas atuais compartilham as mesmas (escassas) opiniões políticas e ignoram quem pense (e/ou escreva) diferente. Não é difícil imaginar a falta de biodiversidade literária que emergirá desse colóquio de ecos, a saber, gritos estilizados de protesto contra o consumo, o capital, o racismo, a guerra e o aquecimento global.
Não se trata, convenhamos, de um porvir convidativo.

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