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NELSON ASCHER
A poesia do século passado
Embora internacional, a poesia foi marcada pela coincidência crescente entre estética e política
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AGORA, quando o século 20 é
mesmo o "passado", já podemos lhe esmiuçar os detalhes
com um mínimo de distanciamento.
Vários historiadores o chamam de
"breve", pois seu ponto de partida
teria sido uma pistola disparada no
verão de 1914, em Sarajevo, e o final,
o desmantelamento, em 1989, de
um muro em Berlim, marcos estes
que também servem para sua poesia, cujos contornos têm ficado cada
vez mais nítidos.
Geograficamente, a poesia do século passado foi mais global ou internacional do que a de qualquer era
anterior. Ainda assim, se bem que
uma malha complexa de indivíduos
e grupos, tendências e influências
tenha se desenvolvido, tal intercomunicação ocorreu antes de modo
unidirecional, com a própria idéia
ocidental de poesia se espalhando
pelas demais culturas. Um elemento
central do Ocidente contagiou o restante: a coincidência crescente entre estética e política. Conforme a
norma que vigorou, a ideologia de tal
ou qual poeta era dedutível de suas
escolhas estilísticas e vice-versa.
Quatro grandes orientações estético-políticas surgiram uma depois
da outra e acabaram, para bem ou
mal, convivendo fértil e conflituosamente, às vezes na mente de um
mesmo autor.
A primeira, contemporânea da
guerra de 1914-18, o "Pós-simbolismo Elitista" de Valéry e Rilke, Eliot e
Pound, Pessoa, Kaváfis e António
Machado, era conservadora inclusive na missão, assumida por seus
criadores, de conservar o que fosse
possível de uma civilização que viam
à beira do desastre terminal.
A seguinte, a "Internacional Modernista" da qual participaram surrealistas franceses, nossos modernistas, a vanguarda hispano-americana, os futuristas russos e outros
"engenheiros" de palavras e almas,
acreditava, otimista, na redenção revolucionária da humanidade que,
segundo o ponto de vista deles, principiara na Rússia em 1917.
A terceira, formada pelos "moralistas apocalípticos" que, principalmente na Europa centro-oriental,
testemunharam a Segunda Guerra,
o Holocausto e o comunismo, levou
ao apogeu um realismo irônico nutrido pela resistência individual seja
às grandes catástrofes, seja aos pequenos horrores cotidianos. Seus
membros mais famosos são Hans
Magnus Enzensberger, Heberto Padilla e Joseph Brodsky. A relevância
dessa vertente, contudo, mostra-se,
por exemplo, no fato de que três de
seus participantes poloneses, Czeslaw Milosz, Zbigniew Herbert e
Wislawa Szymborska já têm seus
poemas vertidos para o inglês.
A última das tendências planetárias, a "Militância Antitudo", apesar
de raízes anarquistas, ligou-se logo à
"nova esquerda" dos anos 60 e floresceu no contexto da Guerra Fria e
no caldo cultural da contracultura.
Embora os poetas do movimento
"beat" (Allen Ginsberg, Gregory
Corso, Lawrence Ferlinghetti) tenham se tornado seus representantes mais típicos, o espírito geral da
tendência é o que predomina, há décadas, em toda parte.
As linhas gerais apresentadas acima não passam disso: linhas gerais,
simplificações explicativas. E valer-se delas não implica desdenhar outras indagações tão plausíveis quanto interessantes. Uma possibilidade
seria explorar certo retorno recente
da poesia aos limites do Estado-nação. Daí que, só em inglês, pelo menos três maneiras distintas de escrever se associem a três países. Enquanto os americanos aderiam (e
aderem) a todas as vanguardas, Phillip Larkin, na Inglaterra, as ignorava e irlandeses, como Seamus Heaney ou Derek Mahon, recorriam
sem preconceito a qualquer recurso
para chegar, afinal, a uma poesia
"conversacional".
Convém, no entanto, enfatizar um
elemento que, por si só, talvez tenha
sido o principal responsável pelos
sucessos poéticos do século passado.
Como nenhuma poesia existe em
isolamento, equacionar impasses e
desafios pressupõe um diálogo
(amigável ou conflituoso, tanto faz),
se não entre poetas, seguramente
entre obras.
E, por mais politizados que fossem, os maiores poetas modernos
raramente permitiam que paixões
assim eclipsassem seu juízo crítico.
Isto não é, porém, nem o que se vê
hoje, nem o que o futuro promete.
Quase 100% dos poetas atuais compartilham as mesmas (escassas) opiniões políticas e ignoram quem pense (e/ou escreva) diferente. Não é difícil imaginar a falta de biodiversidade literária que emergirá desse colóquio de ecos, a saber, gritos estilizados de protesto contra o consumo, o
capital, o racismo, a guerra e o aquecimento global.
Não se trata, convenhamos, de um
porvir convidativo.
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