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NINA HORTA
O quibe da anfitriã perfeita
Na última vez que juntou uma mão de trigo foi do marrom, porque achou que daria uma corzinha melhor
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FOMOS ALMOÇAR despretensiosamente na casa de uma amiga. Era para comer quibe cru.
Nunca tenho chance de comer carne
crua, só carpaccio, porque não faz
parte dos costumes da casa, não peço em restaurantes, enfim, bobagem, mas não como. Convite, no entanto, é convite.
A anfitriã, perfeita. Geralmente
minhas amigas sírias e libanesas
conseguem fazer uma comida tão
boa, num ambiente tão agradável e
familiar, que nos levam direto para
as mil e uma noites, para a ideia de
banquetes, cheiros, vinhos, especiarias, as cores do mercado, os limões,
as frutas, o escorrer do vinho, do
azeite e do mel.
É porque se preocupam com tudo e dão valor a tudo, à
mesa, à cozinheira, às flores, aos
hóspedes, aos cheiros, à antiga graça
da hospitalidade desinteressada.
Para dar um exemplo, ela havia
conseguido galhos de pessegueiro
de flor branca, e não rosa, que são difíceis de achar. Quem notaria? Mas é
isso que faz o ambiente, como uma
produção caprichada de cinema!!!!
Fomos para a cozinha. A senhorinha que trabalha lá a vida inteira já
está com 1 kg de carne de músculo
cortada em quadrados, carne do
meio do músculo, quanto mais clara
melhor, vermelha, mas clara e fresca
e limpa de qualquer gordurinha ou
gelatina, ou tendão. Já vou avisando
que a receita não dou, pois seria indelicado, ela tem lá seus segredos.
Pensam que moeu a carne com
duas cebolas médias em máquina de
moer, como antigamente? Não, nem
pensar, e sim num belo, pequeno e
rápido processador Moulinex. (Escondido de tudo e de todos, juntou
uma colher de manteiga), depois da
carne triturada.
O trigo para misturar é trigo para
quibe, mas do branco (quando geralmente é feito do marrom). Não deixou de molho. Lavou mais ou menos
400 g e depois apertou com força para tirar toda a água. E daí foi colocando, aos poucos, na mistura de carne
e cebola. Na última vez que juntou
uma mão de trigo foi do marrom,
porque achou, assim tão de repente,
que daria uma corzinha melhor.
Agora juntou pedras de gelo e vai
amassando com as mãos delicadamente. Prova a toda hora e pede que
provem. Um pouco de sal, pimenta
síria. Chamar várias pessoas para
darem palpite no sal e na pimenta
até que haja um consenso. Não esquecer de catar e jogar o gelo fora.
O nosso Hervé This já iria procurar saber que história é essa do gelo?
Adianta para alguma coisa? Adianta,
sim, para umedecer devagarinho, e
imagino que a carne crua ficará mais
fresca enquanto é feita e liga-se com
mais facilidade. Está pronto. Enrolar em bolinhas, apertar o centro,
colocar um pouco de azeite e uma
folha de hortelã.
Pode pôr um minuto na geladeira
antes de servir, mas não é preciso. O
que resulta é um patê muito leve,
sem o menor cheiro de carne crua.
Detesto falar em regime, mas já pensaram que comida mais própria para
um regime saudável? E para nós, os
cozinheiros, inventadores de plantão, que bênção! Uma salada de alface é o que se costuma colocar ao lado, com o pão sírio em torradas, ou
não, e nós aviadaríamos tudo com
molhinhos de romã, ou servido como coquetel de camarão, sobre o gelo picado. Mas, por favor, não. A graça está nos ingredientes e na simplicidade. Esqueci de falar, mas, na realidade, o quibe cru pode ser servido
como um grande bolo, alisado com
carinho, à mão, um pocochito de
azeite por cima, mais carinho, só para dar brilho. E desse bolo se tiram
colheradas.
Ao lado, na mesa, mais azeite e cebola picada, se você quiser. É uma
comida básica e é boa assim. A receita perfeita seria: bater um pedaço de
carne bem fresca e limpa com cebolas, sal e pimenta, e juntar 1/3 da
quantidade de carne de trigo e um
pouco de água gelada. Amassar bem.
Acompanhar com azeite e cebolas,
se quiser. Um processo que resulta
em alta cozinha. Os patrícios sabem
das coisas.
ninahorta@uol.com.br
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