São Paulo, quinta-feira, 23 de julho de 2009

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NINA HORTA

O quibe da anfitriã perfeita


Na última vez que juntou uma mão de trigo foi do marrom, porque achou que daria uma corzinha melhor

FOMOS ALMOÇAR despretensiosamente na casa de uma amiga. Era para comer quibe cru. Nunca tenho chance de comer carne crua, só carpaccio, porque não faz parte dos costumes da casa, não peço em restaurantes, enfim, bobagem, mas não como. Convite, no entanto, é convite. A anfitriã, perfeita. Geralmente minhas amigas sírias e libanesas conseguem fazer uma comida tão boa, num ambiente tão agradável e familiar, que nos levam direto para as mil e uma noites, para a ideia de banquetes, cheiros, vinhos, especiarias, as cores do mercado, os limões, as frutas, o escorrer do vinho, do azeite e do mel.
É porque se preocupam com tudo e dão valor a tudo, à mesa, à cozinheira, às flores, aos hóspedes, aos cheiros, à antiga graça da hospitalidade desinteressada. Para dar um exemplo, ela havia conseguido galhos de pessegueiro de flor branca, e não rosa, que são difíceis de achar. Quem notaria? Mas é isso que faz o ambiente, como uma produção caprichada de cinema!!!!
Fomos para a cozinha. A senhorinha que trabalha lá a vida inteira já está com 1 kg de carne de músculo cortada em quadrados, carne do meio do músculo, quanto mais clara melhor, vermelha, mas clara e fresca e limpa de qualquer gordurinha ou gelatina, ou tendão. Já vou avisando que a receita não dou, pois seria indelicado, ela tem lá seus segredos.
Pensam que moeu a carne com duas cebolas médias em máquina de moer, como antigamente? Não, nem pensar, e sim num belo, pequeno e rápido processador Moulinex. (Escondido de tudo e de todos, juntou uma colher de manteiga), depois da carne triturada.
O trigo para misturar é trigo para quibe, mas do branco (quando geralmente é feito do marrom). Não deixou de molho. Lavou mais ou menos 400 g e depois apertou com força para tirar toda a água. E daí foi colocando, aos poucos, na mistura de carne e cebola. Na última vez que juntou uma mão de trigo foi do marrom, porque achou, assim tão de repente, que daria uma corzinha melhor.
Agora juntou pedras de gelo e vai amassando com as mãos delicadamente. Prova a toda hora e pede que provem. Um pouco de sal, pimenta síria. Chamar várias pessoas para darem palpite no sal e na pimenta até que haja um consenso. Não esquecer de catar e jogar o gelo fora. O nosso Hervé This já iria procurar saber que história é essa do gelo?
Adianta para alguma coisa? Adianta, sim, para umedecer devagarinho, e imagino que a carne crua ficará mais fresca enquanto é feita e liga-se com mais facilidade. Está pronto. Enrolar em bolinhas, apertar o centro, colocar um pouco de azeite e uma folha de hortelã. Pode pôr um minuto na geladeira antes de servir, mas não é preciso. O que resulta é um patê muito leve, sem o menor cheiro de carne crua.
Detesto falar em regime, mas já pensaram que comida mais própria para um regime saudável? E para nós, os cozinheiros, inventadores de plantão, que bênção! Uma salada de alface é o que se costuma colocar ao lado, com o pão sírio em torradas, ou não, e nós aviadaríamos tudo com molhinhos de romã, ou servido como coquetel de camarão, sobre o gelo picado. Mas, por favor, não. A graça está nos ingredientes e na simplicidade. Esqueci de falar, mas, na realidade, o quibe cru pode ser servido como um grande bolo, alisado com carinho, à mão, um pocochito de azeite por cima, mais carinho, só para dar brilho. E desse bolo se tiram colheradas.
Ao lado, na mesa, mais azeite e cebola picada, se você quiser. É uma comida básica e é boa assim. A receita perfeita seria: bater um pedaço de carne bem fresca e limpa com cebolas, sal e pimenta, e juntar 1/3 da quantidade de carne de trigo e um pouco de água gelada. Amassar bem. Acompanhar com azeite e cebolas, se quiser. Um processo que resulta em alta cozinha. Os patrícios sabem das coisas.

ninahorta@uol.com.br


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