São Paulo, Sexta-feira, 23 de Julho de 1999
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NETVOX
O estranho caso do clique-fome

MARIA ERCILIA
Editora de Internet

Na semana passada, mencionei em uma nota o Hunger Site -uma página de propaganda que atrai visitantes solicitando que eles cliquem num botão para matar a fome de alguém. Ao clicar, você é informado de que alguém, em algum lugar do Terceiro ou do Quarto Mundo, vai receber uma xícara e meia de arroz, trigo ou milho. Ao mesmo tempo, vê um anúncio de remédio, e o patrocinador paga o seu minuto de atenção financiando uma dose de comida.
Geralmente desconfio dessas idéias muito geniais e muito gratuitas -bem diz o ditado que não existe almoço de graça, mesmo que seja só de milho, trigo e arroz. Mas eu tinha perdido a conta dos e-mails que recebera de amigos, colegas e leitores sobre o Hunger Site. Assim, depois de dar uma boa olhada na página, decidi que ela parecia séria e valia a pena divulgar.
As doações são encaminhadas ao programa de alimentação mundial da ONU, a seção de perguntas do site explica cuidadosamente que ele não é uma ONG, mas um site de marketing, para dar lucro etc, mas indica ONGs e outras instituições aos interessados. Tudo muito razoável. Eu pessoalmente acho de mau-gosto e nada científico o mapa-múndi com países piscando que ilustra a página -cada "piscada" corresponderia a uma criança morta... mas vá lá.
Infelizmente não anotei o número de "doações" brasileiras mencionados nas estatísticas do site, mas reparei que ele era relativamente baixo. O Brasil devia estar abaixo do trigésimo lugar em número de cliques.
Achei que com a blitz de e-mails por aqui isso logo mudaria. Mas, poucos dias depois, começou uma onda contrária ao site no Brasil. Pelo menos dois sites noticiosos publicaram textos afirmando que o site era um golpe, tapeação pura. Gente que tinha recebido dezenas de vezes a mesma mensagem começou a protestar contra o spam.
Enquanto isto, os cliques se amontoavam: só na terça-feira, foram 13.689 visitantes brasileiros. Estamos em segundo lugar, com 58.432 cliques no ano inteiro (quase todos em julho, quando os e-mails começaram a se espalhar). A Alemanha vem logo atrás, com metade do número brasileiro.
Uma das primeiras pessoas a divulgar o site aqui foi a jornalista Rosana Hermann, que enviou o endereço para alguns amigos, que passaram para outros, que passaram para outros...
Pois Rosana ficou indignada com a campanha de difamação. Cansou de tomar lambada do movimento anti-spam brasileiro (às vezes estes defensores da lei e da ordem são mais chatos que os spammers) e foi à luta.
Escreveu para o "dono" do site, John Breen. A resposta que recebeu indica que se trata de uma operação caseira, quase amadora, mas não de um golpe. O único patrocinador do site de Breen até agora é seu pai, um fabricante de remédios.
"Queria agradecer duas coisas", escreveu ele a Rosana. "Primeiro, muito obrigada por tornar o Hunger Site tão popular no Brasil. A julgar pela resposta, você vive num país muito generoso e deve ser uma pessoa muito boa e generosa. Gostaria também de agradecer por perguntar sobre o relacionamento entre o patrocinador e o site, em vez de repetir rumores ouvidos na Internet. Fico feliz de poder explicar os fatos. Meu pai é dono deste fabricante de remédios, uma empresa fundada há 150 anos. Quando comecei o site, não conseguia achar um patrocinador. É uma idéia nova, e as empresas não estavam muito convencidas de gastar dinheiro alimentando pessoas famintas."
O e-mail continua nesse tom, e termina assim: "O Hunger Site têm só sete semanas de idade. Eu estou trabalhando nele há seis meses sem ganhar um tostão. Eu tenho 42 anos e minha mulher tem emprego. Faço isso porque acho que é uma boa idéia, não porque estou tentando ficar rico."
Muito aliviada ficou a Rosana e fiquei eu que, afinal de contas, também ajudei a espalhar a história do clique-fome.
Moral da história: tem muito mais gente usando a Internet no Brasil do que dizem as estatísticas. Como explicar de outra forma a propagação absurda dessas correntes aqui? Lembro de uma campanha para votar na Fernanda Montenegro para o Oscar. Se fosse na Internet, ela tinha ganho disparado: a diferença era algo como 80 para 1, para as outras atrizes.
As pessoas em geral são bem-intencionadas, mas preguiçosas. Quantos de nós já não pensaram em doar tempo ou dinheiro a alguma causa, e acabamos deixando para lá? É por isso que tanta gente resolveu doar cliques. É fácil.

Bons sentimentos
O site da fome teve 734 mil cliques em menos de dois meses. Um resultado bastante bom para uma página tão discreta e para uma estrutura tão modesta. E teve esse resultado explorando os bons sentimentos das pessoas. Geralmente a propaganda prefere apelar para os nossos "maus" sentimentos: cobiça, desejo, vontade de aparecer. Quem sabe aí esteja um nicho inexplorado.


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