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NETVOX
O estranho caso do clique-fome
MARIA ERCILIA
Editora de Internet
Na semana passada, mencionei
em uma nota o Hunger Site
-uma página de propaganda
que atrai visitantes solicitando
que eles cliquem num botão para
matar a fome de alguém. Ao clicar, você é informado de que alguém, em algum lugar do Terceiro ou do Quarto Mundo, vai receber uma xícara e meia de arroz,
trigo ou milho. Ao mesmo tempo,
vê um anúncio de remédio, e o patrocinador paga o seu minuto de
atenção financiando uma dose de
comida.
Geralmente desconfio dessas
idéias muito geniais e muito gratuitas -bem diz o ditado que não
existe almoço de graça, mesmo
que seja só de milho, trigo e arroz.
Mas eu tinha perdido a conta dos
e-mails que recebera de amigos,
colegas e leitores sobre o Hunger
Site. Assim, depois de dar uma
boa olhada na página, decidi que
ela parecia séria e valia a pena divulgar.
As doações são encaminhadas
ao programa de alimentação
mundial da ONU, a seção de perguntas do site explica cuidadosamente que ele não é uma ONG,
mas um site de marketing, para
dar lucro etc, mas indica ONGs e
outras instituições aos interessados. Tudo muito razoável. Eu pessoalmente acho de mau-gosto e
nada científico o mapa-múndi
com países piscando que ilustra a
página -cada "piscada" corresponderia a uma criança morta...
mas vá lá.
Infelizmente não anotei o número de "doações" brasileiras
mencionados nas estatísticas do
site, mas reparei que ele era relativamente baixo. O Brasil devia estar abaixo do trigésimo lugar em
número de cliques.
Achei que com a blitz de e-mails
por aqui isso logo mudaria. Mas,
poucos dias depois, começou uma
onda contrária ao site no Brasil.
Pelo menos dois sites noticiosos
publicaram textos afirmando que
o site era um golpe, tapeação pura. Gente que tinha recebido dezenas de vezes a mesma mensagem
começou a protestar contra o
spam.
Enquanto isto, os cliques se
amontoavam: só na terça-feira,
foram 13.689 visitantes brasileiros. Estamos em segundo lugar,
com 58.432 cliques no ano inteiro
(quase todos em julho, quando os
e-mails começaram a se espalhar). A Alemanha vem logo
atrás, com metade do número
brasileiro.
Uma das primeiras pessoas a divulgar o site aqui foi a jornalista
Rosana Hermann, que enviou o
endereço para alguns amigos, que
passaram para outros, que passaram para outros...
Pois Rosana ficou indignada
com a campanha de difamação.
Cansou de tomar lambada do
movimento anti-spam brasileiro
(às vezes estes defensores da lei e
da ordem são mais chatos que os
spammers) e foi à luta.
Escreveu para o "dono" do site,
John Breen. A resposta que recebeu indica que se trata de uma
operação caseira, quase amadora,
mas não de um golpe. O único patrocinador do site de Breen até
agora é seu pai, um fabricante de
remédios.
"Queria agradecer duas coisas",
escreveu ele a Rosana. "Primeiro,
muito obrigada por tornar o
Hunger Site tão popular no Brasil.
A julgar pela resposta, você vive
num país muito generoso e deve
ser uma pessoa muito boa e generosa. Gostaria também de agradecer por perguntar sobre o relacionamento entre o patrocinador e o
site, em vez de repetir rumores ouvidos na Internet. Fico feliz de poder explicar os fatos. Meu pai é
dono deste fabricante de remédios, uma empresa fundada há
150 anos. Quando comecei o site,
não conseguia achar um patrocinador. É uma idéia nova, e as empresas não estavam muito convencidas de gastar dinheiro alimentando pessoas famintas."
O e-mail continua nesse tom, e
termina assim: "O Hunger Site
têm só sete semanas de idade. Eu
estou trabalhando nele há seis
meses sem ganhar um tostão. Eu
tenho 42 anos e minha mulher
tem emprego. Faço isso porque
acho que é uma boa idéia, não
porque estou tentando ficar rico."
Muito aliviada ficou a Rosana e
fiquei eu que, afinal de contas,
também ajudei a espalhar a história do clique-fome.
Moral da história: tem muito
mais gente usando a Internet no
Brasil do que dizem as estatísticas. Como explicar de outra forma a propagação absurda dessas
correntes aqui? Lembro de uma
campanha para votar na Fernanda Montenegro para o Oscar. Se
fosse na Internet, ela tinha ganho
disparado: a diferença era algo
como 80 para 1, para as outras
atrizes.
As pessoas em geral são bem-intencionadas, mas preguiçosas.
Quantos de nós já não pensaram
em doar tempo ou dinheiro a alguma causa, e acabamos deixando para lá? É por isso que tanta
gente resolveu doar cliques. É fácil.
Bons sentimentos
O site da fome teve 734 mil cliques em menos de dois meses. Um
resultado bastante bom para uma
página tão discreta e para uma
estrutura tão modesta. E teve esse
resultado explorando os bons sentimentos das pessoas. Geralmente
a propaganda prefere apelar para
os nossos "maus" sentimentos: cobiça, desejo, vontade de aparecer.
Quem sabe aí esteja um nicho
inexplorado.
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