São Paulo, Sexta-feira, 23 de Julho de 1999
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"EYES WIDE SHUT" - ANÁLISE
Kubrick escolheu casal "de mentirinha"

GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York

Stanley Kubrick conseguiu o "inconseguível": fez com que Tom Cruise e Nicole Kidman transassem. Pelo menos, cenicamente, é isso o que acontece ou quer acontecer.Ou, melhor, não acontece.
O espectador sente o tédio do que foi filmar isso, um processo que se arrastou por dois anos. "Take" após "take" após "take" e... nada. Nicole Kidman e Tom Cruise não conseguiam transar!
As cenas são entediantes, não críveis, sem serem "incríveis". De Kubrick, se espera algo visionário, algo ainda não visto, algo profético, típico de um eremita, um exilado, um paranóico.
Vou deixar bem claro: eu considero Kubrick um total e absoluto gênio do cinema, um dos maiores de todos os tempos, um criador quase sempre à frente de sua época. Mas, sentado pela segunda vez na platéia de "Eyes Wide Shut", eu ficava entre a pergunta e a afirmação, assim como Arthur Schnitzler queria que sua "Traumnovelle" ficasse entre o sonho e a realidade.
Será que Kubrick fez um filme mesmo tão chato? Ou foram os tempos que ultrapassaram sua eterna obsessão com a hipocrisia em torno da sexualidade e da violência? Será que as questões de Kubrick se exauriram ou foram atropeladas, assim como foram tantas questões políticas e sociais?
Ou será que estão ainda mais escondidas, virtualmente adulteradas, embaladas de outra forma? Kubrick parece estar lutando contra um monstro invisível, nesse seu ultimo filme, e o monstro lhe passa a rasteira.
Não é à toa que ele resulta numa "coisa" quase expressionista. A arte tem dessas coisas. Um fracasso pode ser revestido por uma enorme máscara cenográfica e milionariamente sedutora. Só que, em "Eyes Wide Shut", vê-se o esforço do diretor em cada cena.
Nota-se a exaustão dos atores em participar dessa "mentirinha", proposta por um Schnitzler no auge de seu processo psicanalítico com "herr" Sigmund Freud, o próprio, e apropriada por Kubrick como se quisesse dar uma última "patada" na Hollywood que ele abandonou há 30 anos.
Qual é a patada? A resposta está no título. E, para isso, é necessário mantê-lo em inglês ("Eyes Wide Shut") ou absorvê-lo com um pouco mais de liberdade poética e traduzi-lo como "Olhos Abertamente Fechados".
Ou seja, a profecia do trocadilho de olhos que vêem e não enxergam traz à tona a hipocrisia ainda em vigor na sociedade que se diz progressista, toda equipada para entrar no mundo virtual.
Mentira. Não estão. Kubrick usa a sexualidade como simplesmente mais um dos inúmeros tabus que estacionaram permanentemente entre os seres humanos. E essa sexualidade é encenada, supostamente, como uma verdadeira festa à fantasia em comemoração da fantasia: ela é a "orgia", comentada pela imprensa tanto ou mais que o filme em si.
Essa orgia -nada sensual, aliás, ridícula, boba- nada mais é do que uma analogia a esse mundo virtual em que eu e você navegamos nos computadores.
Kubrick usa seu último recurso antes de morrer e escala um "casal de mentirinha" para estrelar sua tentativa de ilustrar o absurdo que o futuro virtual nos reserva.
Sim, Tom Cruise e Nicole Kidman são ambos gays. O casamento é de conveniência. Os filhos são adotados. Vão juntos a lugares, trocam beijinhos, mas não transam.
Ela tem uma namorada fixa há oito anos. Ele "visita" um engenheiro de som, que mora na Terceira Avenida com a Rua 29. Hollywood inteira sabe disso. Kubrick usou essa "quase hipocrisia" para selar esse território entre a realidade e a realidade virtual que fazem os tempos modernos.
Mas o resultado é, simplesmente, chato. Pena. Pena que o sarcasmo do cineasta, capaz das mais sofisticadas e, ao mesmo tempo, mais banais imagens inesquecíveis, como a baba que James Mason deixava escorrer pela boca em "Lolita", não tenha sido convincente em "Eyes Wide Shut".
Qual é a imagem que sobra? Talvez algumas das máscaras usadas na tal orgia. Carnaval, obscuridade, travestimento, identidades falsas, trocadas, sardônicas, repletas de mensagens e leituras que vão tão longe quanto os protocolos e os tabus da sociedade nos proíbem de ir. Talvez.
Evidentemente, Tom Cruise e Nicole Kidman fizeram parte consensual dessa farsa, tornando-se, de certa forma, cúmplices de Stanley Kubrick.
Pena que essa cumplicidade tenha resultado em tamanha demonstração de esforço, resultando em duas horas e 40 minutos estafantes.


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