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São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"CENAS DA VIDA DE UM MINOTAURO"

Premiado volume de contos do português José Viale Moutinho chega ao Brasil

Textos retomam desatinos da história ibérica

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Primeira ficção do funchalense José Viale Moutinho a ser lançada no Brasil, o volume "Cenas da Vida de um Minotauro" ganhou em 2000 o Grande Prêmio do Conto Camilo Castelo Branco, agraciado pela Associação Portuguesa de Escritores.
No conto epônimo, o autor expõe o caso de um executivo do Minho às voltas com um casarão familiar em ruína. A propriedade tem painéis de azulejo, dos quais várias peças foram furtadas no transcorrer dos anos. O herdeiro procura alguém que possa decifrar, apesar dos azulejos faltantes, a história narrada pelos painéis.
Ele diz querer "alguém que saiba ler o que está além das imagens [...], alguém que possa entrar nas próprias imagens". E continua: "Preciso de conhecer uma pessoa que consiga relacionar estas cenas, pois decerto há toda uma história a dar sentido a tudo isto".
O herdeiro passa então a descrever episódios da vida de um antepassado que, séculos antes, cometeu atos de iniquidade. Em sua trajetória manchada de sangue, o fidalgo Leonardo de Montefeltro partiu a cabeça da mulher por conta de uma suspeita infundada de que ela o estaria traindo com um comendatário de mosteiro.
O próprio comendatário foi em seguida morto por um escravo africano, de quem depois decepariam a língua. Do ponto de vista histórico, o caso ganha um efeito extra quando sabemos que a intriga fora difundida por um filho do poeta lusitano Sá de Miranda, Jerônimo de Sá, que nutria amores pela senhora Montefeltro e tinha ciúme do comendatário, cujo pênis aliás -descobriram após o terem assassinado- fora substituído por uma cânula de prata.
O caso grotesco é narrado com ironia pelo herdeiro depauperado. A iniquidade descrita no conto reflete nas outras histórias da coletânea, quase todas relacionadas com as atrocidades cometidas por Espanha e Portugal -durante a Guerra Civil, no primeiro país, e durante o regime do ditador António Salazar, no segundo.
Em "O Tricot de Constança", por exemplo, uma velha senhora do Porto lembra o marido morto por "duas balas perdidas" na sede do jornal oposicionista dirigido por ele. Em "Negra Sombra! Negra Sombra!", o neto de um republicano espanhol, assassinado pela Falange fascista, é assombrado anos depois por cartas enviadas pelo suposto matador. "Os Alçapões do Sol" é a história de um intelectual preso pelo governo civil de Lisboa por recusar-se a dar dinheiro à causa do general Franco.
O que percebemos, portanto, é um deslocamento da violência de origem psicológica, de foro íntimo, que há no conto que empresta nome à coletânea, para a violência motivada pela esfera política, contida nas histórias que examinam o passado mais recente da península Ibérica.
O título do conto epônimo evoca ainda a figura do Minotauro, a quem os cretenses eram obrigados a oferecer sacrifícios humanos. O ser metade touro e metade homem representa a força bestial que, segundo a lenda, foi destruída por Teseu, defensor assim da missão civilizadora.
Viale Moutinho parece sugerir que, nas atuais irrupções de totalitarismo, encerra-se o instinto cruento de monstros ancestrais. É certo que o espírito irônico que perpassa os textos faz o autor apresentar teseus bem mais ridículos do que o herói grego -mas aí são outros 500.
Como o personagem de seu conto, o autor busca o leitor inteligente, a quem oferece azulejos ficcionais de excelente qualidade. Com eles, esse leitor saberá recuperar, assombrado, mas literariamente satisfeito, o labirinto de desatinos da história ibérica.


Cenas da Vida de um Minotauro
    
Autor: José Viale Moutinho Editora: Landy Editora Quanto: R$ 25 (128 págs.)



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