São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2004

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NELSON ASCHER

O último poeta europeu

Há 500 anos, no extremo ocidente da Eurásia, uma pequena península retrógrada, desunida, desorganizada, caracterizada antes pela coação intransigente do que pela tolerância confessional e apegada mais à superstição do que à investigação sistemática, começou a conquistar perante o mundo, ao mesmo tempo em que caçava bruxas inexistentes e se entregava a ininterruptas guerras religiosas, uma preeminência que nem sua posição geográfica, nem sua situação demográfica teriam possibilitado antever. Nos séculos seguintes essa faixa de terra impôs ao resto do planeta seu modelo e regras, sua vontade e interesses. Por que a Europa e não a China ou a Índia? Isso é algo que historiadores discutirão até o Juízo Final.
E então, coroando quase cem anos de paz interna, prosperidade crescente e expansão imperial, o continente europeu voltou contra si mesmo tudo o que inventara ou aperfeiçoara e, entre 1914 e 1945, devastou-se de tal maneira que apenas a intervenção e posterior tutela americana e soviética o salvaram do suicídio coletivo. Guerras pequenas e grandes, revoluções de esquerda e direita, religiões opressivas substituídas por ideologias assassinas, ódios individuais e coletivos: cada qual desses elementos contribuiu para o desfecho inevitável, mas, se houve um que merece destaque, foi o nacionalismo. Essencial enquanto se tratava de fazer o continente avançar por meio da competição entre seus países, o surgimento dos Estados-nações também o condenou à implosão.
Quando o poeta polonês Czeslaw Milosz, que morreu na semana retrasada aos 93 anos, nasceu, em 1911 no império dos tzares, o nacionalismo já se convertera num fator de dissolução que, em breve, desencadearia a Primeira Guerra Mundial. O poeta cresceu em Vilna, capital histórica da Lituânia, que, no entreguerras, havia sido incorporada à recém-renascida Polônia. A variedade de grupos étnicos que, com suas diferentes línguas, religiões, costumes e aspirações, conviviam ali a contragosto permitiu-lhe concluir desde cedo que a exacerbação das diferenças era a receita do apocalipse, evento ao qual assistiu pessoalmente quando a Alemanha nazista e a Rússia soviética primeiro se aliaram para apagar seu país do mapa, transformando-o, logo que se desentenderam, no campo de batalha da guerra total.
A absorção da Polônia pelo império soviético pôs Milosz diante de um dilema: o de abominar o nacionalismo e concomitantemente desejar a independência de sua pátria. Sua solução provisória consistiu em se considerar, mais do que polonês, um europeu. Ser europeu, para ele, implicava aceitar a diversidade e as contradições não tanto resolvidas pela uniformização da desmemória que subjaz ao projeto da União Européia, como filtradas pelo aprofundamento da consciência histórica, isto é, pela celebração das glórias passadas conjugada com a admissão das atrocidades que seus habitantes cometeram uns contra os outros.
Escrevendo numa língua que, não obstante uma rica tradição literária que remonta à Renascença, era domínio exclusivo de seus falantes nativos, Milosz se tornou o cantor de uma possível Europa reconciliada com seu passado. Embora no que diz respeito às virtudes de seus textos originais tenhamos de acatar o juízo de seus conterrâneos, segundo os quais ele é o maior poeta moderno do país, mesmo quem o leia somente em tradução não deixará de notar nem a engenhosidade com a qual Milosz constrói cada poema nem a destreza que lhe faculta, conforme argumenta através de imagens complexas, chegar a conclusões tão precisas e convincentes quanto as da filosofia.
O polonês pertencia a uma categoria raríssima: a dos poetas pensadores. Muitos poetas têm idéias, algumas até boas, se bem que seja igualmente constatável que se pode fazer grande poesia a partir de sistemas abstrusos como o de madame Blavatsky ou de slogans vazios como os da Terceira Internacional. Milosz, no entanto, tinha um pensamento coerente que ele desenvolvia com pertinência em verso e prosa. Seu ensaio mais influente, aliás, chama-se o "Pensamento Cativo", livro que escreveu, na virada dos anos 40/50, assim que se exilou, rompendo com o regime comunista da Polônia para o qual trabalhara como diplomata. Examinando a trajetória de alguns escritores que conhecera, ele expôs como uma mistura de frivolidade, arrogância e desespero induzira parte substancial da intelectualidade européia a fazer causa comum com tiranias totalitárias.
Sua poesia, imbuída do tom elegíaco de quem sabe que deve ao acaso a sobrevivência, nutre-se de uma obsessão cristã com a culpa e o pecado, não oculta, debaixo de certezas convenientes, dúvidas, hesitações ou temores e, sobretudo lírica, fala habitualmente na primeira pessoa do singular. Mas, como a centralidade nela da memória individual e da história a leva, numa luta incessante contra a propensão humana a deixar "os mortos enterrarem os mortos", a procurar o nexo entre ambas, a voz do poeta adquire cumulativamente o estatuto de (má) consciência da coletividade.
Tal qual seu contemporâneo Paul Celan (1920-70), um judeu que, deportado para os campos nazistas e resolvendo escrever em alemão, conseguiu entranhar nessa língua poemas que jamais permitirão à Alemanha se esquecer de seus próprios crimes, Milosz criou uma obra que, demonstrando a inextricabilidade da civilização e da barbárie européias, será um obstáculo perene no caminho daqueles que, valendo-se da amnésia histórica ou do cinismo puro e simples, reivindiquem para seu continente autofágico uma autoridade moral à qual este não faz jus.


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