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NELSON ASCHER
O último poeta europeu
Há 500 anos, no extremo ocidente da Eurásia, uma pequena península retrógrada, desunida, desorganizada, caracterizada antes pela coação intransigente do que pela tolerância confessional e apegada mais à superstição do que à investigação
sistemática, começou a conquistar perante o mundo, ao mesmo
tempo em que caçava bruxas inexistentes e se entregava a ininterruptas guerras religiosas, uma
preeminência que nem sua posição geográfica, nem sua situação
demográfica teriam possibilitado
antever. Nos séculos seguintes essa faixa de terra impôs ao resto do
planeta seu modelo e regras, sua
vontade e interesses. Por que a
Europa e não a China ou a Índia?
Isso é algo que historiadores discutirão até o Juízo Final.
E então, coroando quase cem
anos de paz interna, prosperidade
crescente e expansão imperial, o
continente europeu voltou contra
si mesmo tudo o que inventara ou
aperfeiçoara e, entre 1914 e 1945,
devastou-se de tal maneira que
apenas a intervenção e posterior
tutela americana e soviética o salvaram do suicídio coletivo. Guerras pequenas e grandes, revoluções de esquerda e direita, religiões opressivas substituídas por
ideologias assassinas, ódios individuais e coletivos: cada qual desses elementos contribuiu para o
desfecho inevitável, mas, se houve
um que merece destaque, foi o nacionalismo. Essencial enquanto se
tratava de fazer o continente
avançar por meio da competição
entre seus países, o surgimento
dos Estados-nações também o
condenou à implosão.
Quando o poeta polonês Czeslaw Milosz, que morreu na semana retrasada aos 93 anos, nasceu,
em 1911 no império dos tzares, o
nacionalismo já se convertera
num fator de dissolução que, em
breve, desencadearia a Primeira
Guerra Mundial. O poeta cresceu
em Vilna, capital histórica da Lituânia, que, no entreguerras, havia sido incorporada à recém-renascida Polônia. A variedade de
grupos étnicos que, com suas diferentes línguas, religiões, costumes
e aspirações, conviviam ali a contragosto permitiu-lhe concluir
desde cedo que a exacerbação das
diferenças era a receita do apocalipse, evento ao qual assistiu pessoalmente quando a Alemanha
nazista e a Rússia soviética primeiro se aliaram para apagar seu
país do mapa, transformando-o,
logo que se desentenderam, no
campo de batalha da guerra total.
A absorção da Polônia pelo império soviético pôs Milosz diante
de um dilema: o de abominar o
nacionalismo e concomitantemente desejar a independência de
sua pátria. Sua solução provisória
consistiu em se considerar, mais
do que polonês, um europeu. Ser
europeu, para ele, implicava aceitar a diversidade e as contradições não tanto resolvidas pela
uniformização da desmemória
que subjaz ao projeto da União
Européia, como filtradas pelo
aprofundamento da consciência
histórica, isto é, pela celebração
das glórias passadas conjugada
com a admissão das atrocidades
que seus habitantes cometeram
uns contra os outros.
Escrevendo numa língua que,
não obstante uma rica tradição
literária que remonta à Renascença, era domínio exclusivo de
seus falantes nativos, Milosz se
tornou o cantor de uma possível
Europa reconciliada com seu passado. Embora no que diz respeito
às virtudes de seus textos originais tenhamos de acatar o juízo
de seus conterrâneos, segundo os
quais ele é o maior poeta moderno do país, mesmo quem o leia somente em tradução não deixará
de notar nem a engenhosidade
com a qual Milosz constrói cada
poema nem a destreza que lhe faculta, conforme argumenta através de imagens complexas, chegar
a conclusões tão precisas e convincentes quanto as da filosofia.
O polonês pertencia a uma categoria raríssima: a dos poetas pensadores. Muitos poetas têm idéias,
algumas até boas, se bem que seja
igualmente constatável que se pode fazer grande poesia a partir de
sistemas abstrusos como o de madame Blavatsky ou de slogans vazios como os da Terceira Internacional. Milosz, no entanto, tinha
um pensamento coerente que ele
desenvolvia com pertinência em
verso e prosa. Seu ensaio mais influente, aliás, chama-se o "Pensamento Cativo", livro que escreveu, na virada dos anos 40/50, assim que se exilou, rompendo com
o regime comunista da Polônia
para o qual trabalhara como diplomata. Examinando a trajetória de alguns escritores que conhecera, ele expôs como uma mistura de frivolidade, arrogância e
desespero induzira parte substancial da intelectualidade européia
a fazer causa comum com tiranias totalitárias.
Sua poesia, imbuída do tom elegíaco de quem sabe que deve ao
acaso a sobrevivência, nutre-se de
uma obsessão cristã com a culpa e
o pecado, não oculta, debaixo de
certezas convenientes, dúvidas,
hesitações ou temores e, sobretudo lírica, fala habitualmente na
primeira pessoa do singular. Mas,
como a centralidade nela da memória individual e da história a
leva, numa luta incessante contra
a propensão humana a deixar "os
mortos enterrarem os mortos", a
procurar o nexo entre ambas, a
voz do poeta adquire cumulativamente o estatuto de (má) consciência da coletividade.
Tal qual seu contemporâneo
Paul Celan (1920-70), um judeu
que, deportado para os campos
nazistas e resolvendo escrever em
alemão, conseguiu entranhar
nessa língua poemas que jamais
permitirão à Alemanha se esquecer de seus próprios crimes, Milosz criou uma obra que, demonstrando a inextricabilidade da civilização e da barbárie européias,
será um obstáculo perene no caminho daqueles que, valendo-se
da amnésia histórica ou do cinismo puro e simples, reivindiquem
para seu continente autofágico
uma autoridade moral à qual este não faz jus.
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