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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Os pecados são eternos
Com o declínio das teologias, o pecado da gula continua por outros meios, atentando contra o deus da beleza
S. FRANCISCO de Assis não era
bom de boca. Explico: sempre que colocavam um prato
de comida à sua frente, o santo temperava tudo com cinzas. Para tirar o
sabor da coisa. E, depois, com uma
resignação só acessível aos crentes,
comia tudo sem ligar às tentações do
palato.
Lembro são Francisco ao ler o
breve tratado que Francine Prose
escreveu para a Oxford University
Press. Intitula-se "Gluttony" (Gula),
e seu texto é o melhor "apéritif" para
acompanhar as notícias do momento. Segundo um cientista americano,
os gordos já ultrapassaram os famintos deste mundo.
Vocês querem números? Gordos:
1 bilhão. Famintos: 800 milhões.
Cronista: nem uma coisa nem outra
-mas, olhando para a balança, já tive dias melhores. E são Francisco?
São Francisco só entra nessa história porque não ouvi uma palavra da
igreja sobre o fenômeno.
Estranho. Quando o assunto é fome (imagem: crianças africanas cobertas por moscas africanas), erguem-se vozes sacerdotais para denunciar as injustiças do planeta.
Mas a gula é pior que a fome. Fome
não é pecado. Gula, sim.
Ou, pelo menos, era -e Francine
Prose, com ironias mil, explica como. Basta consultar os textos canônicos para escutar o mandamento:
quem adora demasiado a barriga
acaba por desleixar a adoração a
Deus. Pior: a barriga não é apenas o
local de todas as chegadas. Também
funciona como ponto de todas as
partidas. Quem come muita carne
acaba por ceder às tentações da carne (olá, luxúria). E quem cede às tentações da carne não evita o cigarro-clichê e a frase-clichê: "Querida, foi
bom para você?". Desce o pano, e a
preguiça se instala entre os amantes.
A gula, culpada, leva a taça.
E assim foi, pelo menos até o Renascimento, quando a gula sofre a
primeira grande mutação. Conta
Prose que a diminuição da influência da igreja sobre a conduta dos homens não eliminou a natureza pecaminosa dos comedores. Dante, na
sua "Divina Comédia", enfia os glutões no terceiro círculo do inferno,
condenados a sofrer tormentos físicos e gélidos.
E, na poesia da época (ler "The
Faerie Queene", de Spenser), a gula
ganha forma humana: um corpo deformado que passeia entre terceiros.
Sem escape. Fato: podemos ser irados, vaidosos, avarentos, orgulhosos, lascivos e invejosos. Mas a gula é
o único pecado que exibimos no corpo. Literalmente.
E hoje? Hoje, com o declínio das
teologias tradicionais, o pecado da
gula continua por outros meios. Nas
palavras de Francine Prose, houve
uma "dessacralização" do pecado,
rapidamente convertido em linguagem temporal. Ninguém atenta
mais contra Deus ao comer uma fatia extra de bolo com chantilly. Mas
comer essa fatia extra é um atentado
contra um outro deus: o deus da saúde, da beleza e da eternidade.
Por isso o guloso (o "obeso", em
linguagem técnica) continua um
"pecador" aos nossos olhos. Porque
ele viola grosseiramente a religião
juvenil que se instalou em volta.
Uma religião que converteu igrejas
em ginásios. E fez de pílulas milagrosas a sua prédica matinal.
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