São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Os pecados são eternos

Com o declínio das teologias, o pecado da gula continua por outros meios, atentando contra o deus da beleza

S. FRANCISCO de Assis não era bom de boca. Explico: sempre que colocavam um prato de comida à sua frente, o santo temperava tudo com cinzas. Para tirar o sabor da coisa. E, depois, com uma resignação só acessível aos crentes, comia tudo sem ligar às tentações do palato.
Lembro são Francisco ao ler o breve tratado que Francine Prose escreveu para a Oxford University Press. Intitula-se "Gluttony" (Gula), e seu texto é o melhor "apéritif" para acompanhar as notícias do momento. Segundo um cientista americano, os gordos já ultrapassaram os famintos deste mundo.
Vocês querem números? Gordos: 1 bilhão. Famintos: 800 milhões. Cronista: nem uma coisa nem outra -mas, olhando para a balança, já tive dias melhores. E são Francisco? São Francisco só entra nessa história porque não ouvi uma palavra da igreja sobre o fenômeno.
Estranho. Quando o assunto é fome (imagem: crianças africanas cobertas por moscas africanas), erguem-se vozes sacerdotais para denunciar as injustiças do planeta. Mas a gula é pior que a fome. Fome não é pecado. Gula, sim.
Ou, pelo menos, era -e Francine Prose, com ironias mil, explica como. Basta consultar os textos canônicos para escutar o mandamento: quem adora demasiado a barriga acaba por desleixar a adoração a Deus. Pior: a barriga não é apenas o local de todas as chegadas. Também funciona como ponto de todas as partidas. Quem come muita carne acaba por ceder às tentações da carne (olá, luxúria). E quem cede às tentações da carne não evita o cigarro-clichê e a frase-clichê: "Querida, foi bom para você?". Desce o pano, e a preguiça se instala entre os amantes. A gula, culpada, leva a taça.
E assim foi, pelo menos até o Renascimento, quando a gula sofre a primeira grande mutação. Conta Prose que a diminuição da influência da igreja sobre a conduta dos homens não eliminou a natureza pecaminosa dos comedores. Dante, na sua "Divina Comédia", enfia os glutões no terceiro círculo do inferno, condenados a sofrer tormentos físicos e gélidos.
E, na poesia da época (ler "The Faerie Queene", de Spenser), a gula ganha forma humana: um corpo deformado que passeia entre terceiros. Sem escape. Fato: podemos ser irados, vaidosos, avarentos, orgulhosos, lascivos e invejosos. Mas a gula é o único pecado que exibimos no corpo. Literalmente.
E hoje? Hoje, com o declínio das teologias tradicionais, o pecado da gula continua por outros meios. Nas palavras de Francine Prose, houve uma "dessacralização" do pecado, rapidamente convertido em linguagem temporal. Ninguém atenta mais contra Deus ao comer uma fatia extra de bolo com chantilly. Mas comer essa fatia extra é um atentado contra um outro deus: o deus da saúde, da beleza e da eternidade.
Por isso o guloso (o "obeso", em linguagem técnica) continua um "pecador" aos nossos olhos. Porque ele viola grosseiramente a religião juvenil que se instalou em volta. Uma religião que converteu igrejas em ginásios. E fez de pílulas milagrosas a sua prédica matinal.


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