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MARCELO COELHO
Folclore, gramofone e euforia
Nem eufóricos nem românticos, os ouvidos alternam emoção e tédio ao ouvir esses CDs
NUMA DE suas tiradas românticas, o visconde de Chateaubriand dizia que, mesmo nas
horas felizes, "o canto dos homens é
sempre triste". Escrevendo por volta de 1810, o autor de "René" não tinha como imaginar os desenvolvimentos frenéticos da arte vocal no
século 20.
Mas estou ouvindo aos poucos
uma coleção de seis CDs, lindamente editada pelo Sesc e pela Secretaria
Municipal da Cultura, com uma seleção dos registros colhidos na legendária Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário de
Andrade em 1938.
De fevereiro a julho daquele ano,
uma equipe de pesquisadores viajou
pelo Norte e Nordeste, registrando
com os pesados aparelhos fonográficos da época todo tipo de manifestação folclórica: catimbós de João Pessoa, cocos da Paraíba, uma pajelança
no Pará, sem contar o indefectível
bumba-meu-boi. A música de Minas
Gerais também aparece no disco
seis, com registros de modinha, cateretê e congada.
A qualidade sonora do material é
surpreendentemente boa. Claro que
só especialistas conseguirão escutar
tudo de enfiada: em muitas faixas, a
idéia que temos de um folclore acessível e melodioso -como nas cantigas de roda- é substituída pela impressão de um vozerio inexpugnável, estrangulado e aflito, como se alguém gritasse do fundo de um poço.
Talvez eu diga isso imaginando
aquelas cornetas acústicas que vinham acopladas aos antigos fonógrafos: uma espécie de abismo escuro, apto a transmitir vozes de outro
mundo, a que os negros bolachões
de baquelite davam um componente adicional de fragilidade e luto.
Mas o que para nós funciona como
um túnel do tempo tenebroso deve
ter tido, em 1938, o significado de
uma grande ponte cultural. Não se
trata apenas de "descobrir" nosso
folclore. Gravar cantos de Iemanjá,
numa época em que os cultos afrobrasileiros eram proibidos pela polícia, indicava uma transformação na
própria atitude de setores do poder
público.
O próprio Estado brasileiro se
"nacionalizava", por assim dizer,
vencendo aos poucos o cosmopolitismo afrancesado da Primeira República. Claro que com os desvios
autoritários de praxe; mas o espírito
democrático e livre de Mário de Andrade, nesse aspecto, pôde servir de
contraponto à violência disciplinadora do Estado Novo.
Curiosamente, os cantos populares recolhidos na Missão Folclórica
não se restringiam ao repertório
clássico dos bois, da roça, do sapé e
do tatu. Em Belém, em pleno boi-bumbá, os pesquisadores toparam
com uma versão do samba "Pelo Telefone", de Donga. E com uma cantiga que fala de "um aparelho" que foi
visto "a voar naquele azulão".
Também o folclore se rendia aos
novos tempos. É que a modernização, ao contrário do que pensava
Chateaubriand (para citá-lo mais
uma vez), não consiste numa travessia sem volta de uma margem a outra do rio; assemelha-se mais a um
movimento geológico, aluvial, em
que terras inteiras se movem, arrastando tudo junto com elas. A estética romântica, com toda sua nostalgia pelo passado, não deixava de ser
moderna precisamente por isso.
A gigantesca movimentação de
terreno arrastou consigo uma carga
inumerável de vítimas, que não
eram menos vítimas, aliás, no sistema anterior. Exilado pela Revolução
Francesa, o aristocrata Chateaubriand tinha lá suas razões para projetar a própria tristeza em tudo o
que ouvia; certamente cantigas folclóricas se prestam a isso.
Um acalanto paraense, ou paraibano (há duas versões diferentes
nos CDs), fala de um menino chorando, enquanto sua mãe tem muito
o que fazer. Setenta anos depois da
gravação, podemos dizer, ao modo
romântico, que ambos agora dormem, cobertos pela mesma noite.
Justamente o modernismo de
Mário de Andrade reagia contra as
lágrimas românticas: "A humanidade faz manha há mais de cem anos",
dizia a revista "Klaxon" em 1922. A
junção do folclore com o gramofone
era sinônimo, sem dúvida, de euforia técnica e agitação estética.
Nem eufóricos nem românticos,
nossos ouvidos alternam emoção e
tédio ao ouvir esses CDs. Particularmente, gosto de um diálogo numa
congada de Minas. Um cantador diz
que enfrentará, com espada e lança,
os inimigos do Reino, rebeldes assassinos, cruéis tiranos. "Irei ao
campo de batalha, disposto a perder
até a última gota de sangue." Ao que
outro guerreiro responde, com sotaque drummondiano: "Então vai".
Mais informações no site www.sescsp.org.br.
coelhofsp@uol.com.br
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