São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 2006

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MARCELO COELHO

Folclore, gramofone e euforia

Nem eufóricos nem românticos, os ouvidos alternam emoção e tédio ao ouvir esses CDs

NUMA DE suas tiradas românticas, o visconde de Chateaubriand dizia que, mesmo nas horas felizes, "o canto dos homens é sempre triste". Escrevendo por volta de 1810, o autor de "René" não tinha como imaginar os desenvolvimentos frenéticos da arte vocal no século 20.
Mas estou ouvindo aos poucos uma coleção de seis CDs, lindamente editada pelo Sesc e pela Secretaria Municipal da Cultura, com uma seleção dos registros colhidos na legendária Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário de Andrade em 1938.
De fevereiro a julho daquele ano, uma equipe de pesquisadores viajou pelo Norte e Nordeste, registrando com os pesados aparelhos fonográficos da época todo tipo de manifestação folclórica: catimbós de João Pessoa, cocos da Paraíba, uma pajelança no Pará, sem contar o indefectível bumba-meu-boi. A música de Minas Gerais também aparece no disco seis, com registros de modinha, cateretê e congada.
A qualidade sonora do material é surpreendentemente boa. Claro que só especialistas conseguirão escutar tudo de enfiada: em muitas faixas, a idéia que temos de um folclore acessível e melodioso -como nas cantigas de roda- é substituída pela impressão de um vozerio inexpugnável, estrangulado e aflito, como se alguém gritasse do fundo de um poço.
Talvez eu diga isso imaginando aquelas cornetas acústicas que vinham acopladas aos antigos fonógrafos: uma espécie de abismo escuro, apto a transmitir vozes de outro mundo, a que os negros bolachões de baquelite davam um componente adicional de fragilidade e luto.
Mas o que para nós funciona como um túnel do tempo tenebroso deve ter tido, em 1938, o significado de uma grande ponte cultural. Não se trata apenas de "descobrir" nosso folclore. Gravar cantos de Iemanjá, numa época em que os cultos afrobrasileiros eram proibidos pela polícia, indicava uma transformação na própria atitude de setores do poder público.
O próprio Estado brasileiro se "nacionalizava", por assim dizer, vencendo aos poucos o cosmopolitismo afrancesado da Primeira República. Claro que com os desvios autoritários de praxe; mas o espírito democrático e livre de Mário de Andrade, nesse aspecto, pôde servir de contraponto à violência disciplinadora do Estado Novo.
Curiosamente, os cantos populares recolhidos na Missão Folclórica não se restringiam ao repertório clássico dos bois, da roça, do sapé e do tatu. Em Belém, em pleno boi-bumbá, os pesquisadores toparam com uma versão do samba "Pelo Telefone", de Donga. E com uma cantiga que fala de "um aparelho" que foi visto "a voar naquele azulão".
Também o folclore se rendia aos novos tempos. É que a modernização, ao contrário do que pensava Chateaubriand (para citá-lo mais uma vez), não consiste numa travessia sem volta de uma margem a outra do rio; assemelha-se mais a um movimento geológico, aluvial, em que terras inteiras se movem, arrastando tudo junto com elas. A estética romântica, com toda sua nostalgia pelo passado, não deixava de ser moderna precisamente por isso.
A gigantesca movimentação de terreno arrastou consigo uma carga inumerável de vítimas, que não eram menos vítimas, aliás, no sistema anterior. Exilado pela Revolução Francesa, o aristocrata Chateaubriand tinha lá suas razões para projetar a própria tristeza em tudo o que ouvia; certamente cantigas folclóricas se prestam a isso.
Um acalanto paraense, ou paraibano (há duas versões diferentes nos CDs), fala de um menino chorando, enquanto sua mãe tem muito o que fazer. Setenta anos depois da gravação, podemos dizer, ao modo romântico, que ambos agora dormem, cobertos pela mesma noite.
Justamente o modernismo de Mário de Andrade reagia contra as lágrimas românticas: "A humanidade faz manha há mais de cem anos", dizia a revista "Klaxon" em 1922. A junção do folclore com o gramofone era sinônimo, sem dúvida, de euforia técnica e agitação estética.
Nem eufóricos nem românticos, nossos ouvidos alternam emoção e tédio ao ouvir esses CDs. Particularmente, gosto de um diálogo numa congada de Minas. Um cantador diz que enfrentará, com espada e lança, os inimigos do Reino, rebeldes assassinos, cruéis tiranos. "Irei ao campo de batalha, disposto a perder até a última gota de sangue." Ao que outro guerreiro responde, com sotaque drummondiano: "Então vai". Mais informações no site www.sescsp.org.br.


coelhofsp@uol.com.br

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