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CONTARDO CALLIGARIS
A vida de Santiago
Uma vida se justifica como um arranjo de flores, não pela duração, mas pela harmonia
ESTRÉIA AMANHÃ o filme "Santiago", de João Moreira Salles. A história de sua produção é conhecida: em 1992, João Moreira Salles filmou um documentário sobre Santiago Badariotti Merlo,
que tinha sido, no passado, durante
30 anos, o mordomo de sua família.
Para o diretor, era uma maneira de
se lembrar de sua infância e de meditar sobre vida e morte, memória e
esquecimento. Ele abandonou o
projeto durante a montagem. Santiago morreu em 1994. Em 2005,
João Moreira Salles voltou ao material abandonado para criar um filme
que é uma obra-prima, imperdível.
Já foi observado que "Santiago" é
um filme que desnuda a relação entre o documentarista e sua personagem. O diretor não esconde sua voz,
que pede que Santiago repita, retome, fale mais rápido, olhe para cá ou
para lá. Alguns acharam que o longa-metragem também quer desvendar
a desigualdade inevitável entre o ex-mordomo e o filho do ex-dono de casa. Pode ser.
Mas a imperiosidade do documentarista me evocou outra coisa.
Quando minha avó ainda vivia, eu,
ao voltar para casa, pedia que ela fizesse o polpettone de minha infância. Ela fazia, eu agradecia, elogiava e
também me queixava: nunca era
exatamente como "aquele" polpettone. Num momento do filme, Santiago recita o Pater Noster, o Salve
Regina e a Ave-Maria, evocando sua
avó, que lhe ensinara a rezar em latim. O diretor se lembra da comoção
que a reza de Santiago em latim lhe
causava, quando criança. Logo, ele
descarta o "take" e pede que Santiago reze novamente, concentrando-se e juntando as mãos.
Crítica do gênero documentário?
Eu vejo, sobretudo, o efeito tocante
do mergulho na memória: o que
João Moreira Salles quer é reviver a
emoção que lhe dava "aquela" reza
em latim da sua infância -"aquela"
reza que não volta mais.
Muitos observaram também que
"Santiago" é um filme sobre a luta da
memória contra a morte. Eu mesmo, depois de assistir ao filme, perguntei o que aconteceria com as 30
mil páginas que Santiago escreveu
sobre as dinastias da nobreza do
mundo ao longo de 4.000 anos de
história. Era como se quisesse que a
sobrevivência da obra de Santiago
prolongasse o sentido de sua vida e
da vida em geral (os calhamaços ficarão no Instituto Moreira Salles, na
casa da Gávea, onde Santiago foi
mordomo).
Agora, Santiago tem uma consciência aguda de que a vida é passageira e o céu está vazio (citação de
Bergman por Santiago). E não é uma
consciência produzida pela idade
avançada. Walter Salles me contou
uma anedota bem anterior ao filme:
uma manhã, Walter Moreira Salles,
seu pai (e pai de João, claro) abriu as
cortinas de seu apartamento de Copacabana junto com Santiago. Era
um primeiro de maio ensolarado.
Walter Moreira Salles comentou:
"Que dia lindo". E Santiago, imediatamente, em portunhol, olhando para a praia já cheia: "Em cem años, estarão todos muertos".
Mas Santiago não é cínico. E seu
remédio contra a morte não é apenas sua prodigiosa memória.
No filme, Santiago toca as castanholas, canta, dança com as mãos
e, sobretudo, está sempre preocupado com a beleza. Inclusive com a beleza da morte, "la gran partita", o
"bel morir" que pode dignificar a
vida inteira.
Uma especialidade de Santiago
consistia em preparar arranjos de
flores para as festas. Ele dava, aos diferentes arranjos, nomes musicais,
cantata, scherzos etc. Quando os
terminava, ficava a fim de lhes pedir
(aos arranjos) que cantassem, assim
como Michelangelo perguntou "Por
que não falas?" à sua estátua do Moisés (Santiago corrige a lenda, preferindo o Davi).
As flores dos arranjos logo murcharão, mas o importante é que elas
desabrochem na hora efêmera da
festa, mostrando o esplendor de cada flor e a harmonia do arranjo. Como um arranjo, uma vida não se justifica por sua duração, nem pela
lembrança, nem pelo aplauso dos
outros, ela se justifica por sua harmonia intrínseca.
Se for assim, o Santiago que conhecemos pelo filme de João Moreira Salles justificou sua vida.
Nota: nas últimas semanas, errei
duas vezes: ao escrever que "Goldfinger" era o primeiro James Bond
com Sean Connery e ao corrigir, dizendo que era o segundo. É o terceiro. O fato é que "Goldfinger" foi, na
minha história, o primeiro grande
propagandista de uma justificação
hollywoodiana da vida. Hoje, preferiria justificar minha vida tocando
Beethoven, de fraque, numa casa deserta, com Santiago.
ccalligari@uol.com.br
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