São Paulo, sexta-feira, 23 de setembro de 2005

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CRÍTICA

Medo domina as lembranças fictícias do autor

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Complô contra a América", de Philip Roth, traz o autor norte-americano no melhor da sua forma. Se não atinge a elevação quase irrespirável de "O Teatro de Sabbath" (1995), coloca-se muito bem entre uma impressionante série de obras lançadas desde 1993, entre as quais se destacam "Operação Shylock - Uma Confissão" (1994), "Pastoral Americana" (1998) e "A Marca Humana" (2002).
"Complô contra a América", contudo, precisa ser pensado em dois planos: o literário e um outro, externo, que seria desnecessário, mas que o autor fez questão de ressaltar.
Nesta distopia situada no passado (em geral elas se localizam no futuro...), o ponto de partida é simples: o que teria acontecido com os Estados Unidos se, em 1940, no meio da Segunda Guerra Mundial, Franklin Delano Roosevelt não tivesse vencido as eleições do país e o presidente escolhido então fosse o aviador e simpatizante nazista Charles Lindbergh?

Vida real
A maneira de contar a história, por outro lado, não é nada simples, mas faz todo o sentido sendo o escritor quem é. Ele resolve focar a narrativa em uma única família, a dele mesmo na vida real, adotando o ponto de vista do menino de sete anos que ele teria sido se esse desvio da história houvesse ocorrido.
Tem-se então um narrador já adulto, Philip Roth, que rememora os fatos e as impressões da criança judia que os vivenciou. Não por acaso, as primeiras linhas do texto são: "O medo domina estas lembranças, um medo perpétuo".
E é mesmo o medo -e uma cruel variação, a paranóia- a sensação mais trabalhada pela trama à medida que o texto se desenrola e o personagem Roth, a sua família e conhecidos (o pai, a mãe, um irmão mais velho, um primo e os vizinhos e amigos de bairro de Weequahic, em Newark) vão se envolvendo nos acontecimentos decorrentes da vitória de Lindbergh, que, assim que é eleito, viaja para a Islândia para assinar um acordo com Hitler e garantir relações pacíficas entre os Estados Unidos e a Alemanha.
Não é porém nos grandes, mas nos pequenos acontecimentos, rememorados a partir das interpretações que criava para os eventos quando criança, que a história está centrada.
Assim, uma visita que a família planejara havia anos para Washington se realiza seis meses após as eleições. E aí, em uma das seqüências mais impactantes do livro, fica evidente como a nova posição política da nação contaminara a sociedade e como as palavras da Oração de Gettysburg que o pai, Herman Roth, lera emocionado pouco antes ("Todos os homens são criados iguais...") já não faziam mais sentido. Já não fazia mais sentido o mundo que o menino conhecia até então: "Todas as manhãs, na escola, eu prestava o juramento à bandeira nacional. Com meus colegas, nas cerimônias, cantava hinos que louvavam as maravilhas de nosso país. Observava religiosamente os feriados nacionais e jamais me ocorreu questionar minha empolgação com a queima de fogos no Dia da Independência (...). A nossa pátria era os Estados Unidos da América".

Ficcção e realidade
Roth, o autor, está em terreno familiar: o dos duplos fragmentados, das identidades disputadas, da discussão da condição judaica nos Estados Unidos e fora deles e das grandes construções narrativas, rivalizando com o que há de melhor em uma monumental tradição das literaturas de língua inglesa.
Mas, ainda mais do que em textos recentes, o tom cômico cede espaço aqui para o trágico, passagem contraditória sintetizada em (mais uma, para quem lembra de "O Teatro de Sabbath") uma inesquecível conversa telefônica entre a mãe do protagonista e um menino que ainda não sabia que já era um órfão.
O ponto negativo vem ao final, um pós-escrito no qual o escritor busca deixar bem demarcado o que na obra é criação sua e o que corresponde à realidade, posfácio que, visto em conjunto com um artigo publicado por ele no "The New York Times", cuja intenção é contar "a história por trás de "Complô contra a América'", indica um incompreensível retrocesso em um autor que terminava um romance como "Operação Shylock - Uma Confissão", uma epopéia da confusão entre fato e invenção, com a seguintes palavras: "Este livro é uma obra de ficção (...) Os nomes de personagens, lugares e incidentes são ou produto da imaginação do autor ou usados ficcionalmente. Qualquer semelhança com fatos, locais e pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência. Esta confissão é falsa".


Adriano Schwartz é professor de arte, literatura e cultura no Brasil da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP-Leste, autor de "O Abismo Invertido" (editora Globo) e organizador de "Memórias do Presente" (Publifolha).

Complô contra a América
    
Autor: Philip Roth
Tradução: Paulo Henriques Brito
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 50 (488 págs.)


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