São Paulo, sexta-feira, 23 de setembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Lembranças do grande peixe fosforescente

Mulher bonita, mais que bonita: impressionante. Talvez nem fosse bonita, mas bastava olhá-la para nunca esquecê-la. O rosto projetado para frente, um tipo eslavo, silencioso, pupilas claras que olhavam o mundo sem nunca deixar de ver dentro -sua pátria era ela mesma, aquilo que hoje poderemos chamar de "praia".
Foram muitos os que se apaixonaram por ela -pela mulher, não ainda pela escritora. Durante anos, seus livros ficaram amontoados nos sebos da cidade. Nos jornais e revistas, volta e meia aparecia uma resenha amável feita de estima ou de homenagem à colega -Clarice era também jornalista, creio que trabalhou em "A Noite", jornal antigo que pertencia ao governo e que teve a sua fase de grande vespertino.
Até ser publicada pela turma da Editora do Autor, ela foi uma curiosa espécie de inédita. Todos sabiam que Clarice escrevia e escrevia bem, mas poucos a liam. Durante anos fez entrevistas, perfis, reportagens para a revista "Manchete", onde colaboravam Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes e outros que também integravam o elenco daquela editora que mais tarde se chamaria Sabiá.
Não foi a crítica que descobriu Clarice Lispector. Foram os leitores, principalmente leitoras, ao atingirem o nível universitário. O grande público custou a chegar, preferia então um tipo de ficção mais colorido e movimentado. O mergulho introspectivo em nossa literatura era seara de iniciados que apreciavam Cornélio Pena e tinham acesso a Katherine Mansfield.
De repente, sua obra começou a ser lida e discutida, era a preferida para teses de mestrado. Vieram em cascata as traduções e os estudos críticos, publicaram-se, no Brasil e no exterior, os primeiros ensaios acadêmicos sobre sua ficção. Nascia um fenômeno que vinha de baixo para cima, que subia do leitor para a crítica, do limbo para o olimpo editorial.
Mais ou menos pela mesma época, quando seus livros saíram do pó para o destaque das livrarias e da mídia, um acidente quase a matou. Clarice gostava de escrever em uma pequena máquina portátil, que colocava ao colo. Fumava muito, muitas de suas fotos, hoje tornadas clássicas, a mostram de cigarro na boca. Uns dizem que ela já estava deitada quando cochilou com o cigarro aceso. Saiu do incêndio com queimaduras que cirurgias reparadoras disfarçaram. O belo, o enigmático rosto de Clarice Lispector nunca mais foi o mesmo.
Morava no Leme, num apartamento recuado da rua General Ribeiro da Costa, pouco depois da ladeira onde morava Ary Barroso. Eram os dois moradores mais famosos do pedaço e talvez nunca se tenham conhecido. Clarice não era dada à badalação nem costumava freqüentar lugares obviamente corretos.
Desquitada de um diplomata, com filhos já crescidos, ela podia ter entrado em circulação no complicado universo dos "casos". Não faltavam pretendentes. É possível que ela tenha se ligado a um ou a outro, mas sempre discretamente. Paixão para ela não era segundo a carne -não foi à toa que escreveu "Paixão Segundo G.H."
Por sinal, esse título nasceu depois de o livro estar quase pronto. No início dos anos 60, ela me telefonou, tinha uma amiga, a embaixatriz Maria Martins, que desejava me conhecer. Pediu que Clarice me levasse a seu apartamento, no Flamengo. Apanhei-a em casa, eu tinha um Gordini cinza, era novidade na época, Clarice elogiou o carro. Apresentou-me a Maria Martins, conversamos sobre arte, leitura e um pouco sobre política, que estava fervendo naquela ocasião. Depois fui levá-la de volta ao Leme, e ela me perguntou o que eu estava escrevendo.
Não estava escrevendo nada, naquele momento. A editora Civilização Brasileira anunciava um novo livro meu, "Paixão Segundo Mateus", título chupado de J.S. Bach, aliás, chupado dos evangelhos. Como sempre acontece comigo, tinha o título, mas não tinha a história. Clarice tinha a história, mas não tinha o título. Na crônica que escrevia no "Correio da Manhã", sob a rubrica "Da Arte de Falar Mal", não a acusei de ter roubado o título que afinal não era meu, era de Bach e do Novo Testamento. Clarice já se instalara na prateleira mais nobre de nossa literatura, "A Maçã no Escuro" estourara. Ela chegou a pensar em só se dedicar às letras, mas o mercado era pequeno, teve de voltar ao jornalismo, a fazer entrevistas estranhas. Lembro de duas: com o ex-presidente Jânio Quadros e com a primeira-dama de então, dona Yolanda Costa e Silva. Impressionante a sua capacidade de dar conta do recado profissional, traçar o perfil de personalidades que nada tinham a ver com Clarice Lispector, com seu mundo, sua alma.
A diferença é que ela vestia um escafandro para viajar em universo alheio. Sua arte, sua beleza, só vinham quando mergulhava nua em si mesma. Branca, enorme peixe fosforescente, iluminava com surpreendentes centelhas o mundo submerso no qual vivia e do qual nos trazia notícia.

 

PS - Este artigo foi publicado numa revista semanal que não mais existe. Grupos de estudantes de diversos Estados, que trabalham sobre a vida e obra de Clarice, me pedem que o reproduza.


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