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CARLOS HEITOR CONY
Lembranças do grande peixe fosforescente
Mulher bonita, mais que
bonita: impressionante.
Talvez nem fosse bonita, mas bastava olhá-la para nunca esquecê-la. O rosto projetado para frente,
um tipo eslavo, silencioso, pupilas
claras que olhavam o mundo sem
nunca deixar de ver dentro -sua
pátria era ela mesma, aquilo que
hoje poderemos chamar de
"praia".
Foram muitos os que se apaixonaram por ela -pela mulher,
não ainda pela escritora. Durante
anos, seus livros ficaram amontoados nos sebos da cidade. Nos
jornais e revistas, volta e meia
aparecia uma resenha amável
feita de estima ou de homenagem
à colega -Clarice era também
jornalista, creio que trabalhou em
"A Noite", jornal antigo que pertencia ao governo e que teve a sua
fase de grande vespertino.
Até ser publicada pela turma da
Editora do Autor, ela foi uma curiosa espécie de inédita. Todos sabiam que Clarice escrevia e escrevia bem, mas poucos a liam. Durante anos fez entrevistas, perfis,
reportagens para a revista "Manchete", onde colaboravam Rubem
Braga, Fernando Sabino, Paulo
Mendes Campos, Vinicius de Moraes e outros que também integravam o elenco daquela editora
que mais tarde se chamaria Sabiá.
Não foi a crítica que descobriu
Clarice Lispector. Foram os leitores, principalmente leitoras, ao
atingirem o nível universitário. O
grande público custou a chegar,
preferia então um tipo de ficção
mais colorido e movimentado. O
mergulho introspectivo em nossa
literatura era seara de iniciados
que apreciavam Cornélio Pena e
tinham acesso a Katherine Mansfield.
De repente, sua obra começou a
ser lida e discutida, era a preferida para teses de mestrado. Vieram em cascata as traduções e os
estudos críticos, publicaram-se,
no Brasil e no exterior, os primeiros ensaios acadêmicos sobre sua
ficção. Nascia um fenômeno que
vinha de baixo para cima, que subia do leitor para a crítica, do
limbo para o olimpo editorial.
Mais ou menos pela mesma
época, quando seus livros saíram
do pó para o destaque das livrarias e da mídia, um acidente quase a matou. Clarice gostava de escrever em uma pequena máquina
portátil, que colocava ao colo. Fumava muito, muitas de suas fotos,
hoje tornadas clássicas, a mostram de cigarro na boca. Uns dizem que ela já estava deitada
quando cochilou com o cigarro
aceso. Saiu do incêndio com queimaduras que cirurgias reparadoras disfarçaram. O belo, o enigmático rosto de Clarice Lispector
nunca mais foi o mesmo.
Morava no Leme, num apartamento recuado da rua General
Ribeiro da Costa, pouco depois da
ladeira onde morava Ary Barroso. Eram os dois moradores mais
famosos do pedaço e talvez nunca
se tenham conhecido. Clarice não
era dada à badalação nem costumava freqüentar lugares obviamente corretos.
Desquitada de um diplomata,
com filhos já crescidos, ela podia
ter entrado em circulação no
complicado universo dos "casos".
Não faltavam pretendentes. É
possível que ela tenha se ligado a
um ou a outro, mas sempre discretamente. Paixão para ela não
era segundo a carne -não foi à
toa que escreveu "Paixão Segundo G.H."
Por sinal, esse título nasceu depois de o livro estar quase pronto.
No início dos anos 60, ela me telefonou, tinha uma amiga, a embaixatriz Maria Martins, que desejava me conhecer. Pediu que
Clarice me levasse a seu apartamento, no Flamengo. Apanhei-a
em casa, eu tinha um Gordini
cinza, era novidade na época,
Clarice elogiou o carro. Apresentou-me a Maria Martins, conversamos sobre arte, leitura e um
pouco sobre política, que estava
fervendo naquela ocasião. Depois
fui levá-la de volta ao Leme, e ela
me perguntou o que eu estava escrevendo.
Não estava escrevendo nada,
naquele momento. A editora Civilização Brasileira anunciava
um novo livro meu, "Paixão Segundo Mateus", título chupado
de J.S. Bach, aliás, chupado dos
evangelhos. Como sempre acontece comigo, tinha o título, mas não
tinha a história. Clarice tinha a
história, mas não tinha o título.
Na crônica que escrevia no "Correio da Manhã", sob a rubrica
"Da Arte de Falar Mal", não a
acusei de ter roubado o título que
afinal não era meu, era de Bach e
do Novo Testamento. Clarice já se
instalara na prateleira mais nobre de nossa literatura, "A Maçã
no Escuro" estourara. Ela chegou
a pensar em só se dedicar às letras, mas o mercado era pequeno,
teve de voltar ao jornalismo, a fazer entrevistas estranhas. Lembro
de duas: com o ex-presidente Jânio Quadros e com a primeira-dama de então, dona Yolanda
Costa e Silva. Impressionante a
sua capacidade de dar conta do
recado profissional, traçar o perfil
de personalidades que nada tinham a ver com Clarice Lispector,
com seu mundo, sua alma.
A diferença é que ela vestia um
escafandro para viajar em universo alheio. Sua arte, sua beleza,
só vinham quando mergulhava
nua em si mesma. Branca, enorme peixe fosforescente, iluminava
com surpreendentes centelhas o
mundo submerso no qual vivia e
do qual nos trazia notícia.
PS - Este artigo foi publicado
numa revista semanal que não
mais existe. Grupos de estudantes
de diversos Estados, que trabalham sobre a vida e obra de Clarice, me pedem que o reproduza.
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