São Paulo, sábado, 23 de setembro de 2006

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Livraria de intelectuais paulistanos chega ao fim

Duas Cidades, no centro de SP, foi centro de referência e editora de ponta nos anos 70

História da loja, vítima da decadência do centro, e de suas publicações se confunde com a de Antonio Candido e seus alunos


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Não se fazem mais livrarias como a Duas Cidades nem amizades como a que unia o crítico literário Antonio Candido e o idealizador da loja e editora, José Petronillo de Santa Cruz.
A livraria, aberta em 1954, foi por décadas um dos principais pontos de encontro de intelectuais paulistanos, entre eles e com os livros que ansiosamente aguardavam chegar da Europa. Ela puxa hoje definitivamente suas grades na rua Bento Freitas, centro degradado de São Paulo.
Santa Cruz está enterrado no túmulo da família de Candido no cemitério São Paulo, no bairro de Pinheiros. Ao seu enterro, num domingo do início de julho de 1997, compareceram o próprio Candido e sua mulher, Gilda de Mello e Souza.
A viúva de Santa Cruz, desde então responsável pela Duas Cidades, Maria Antonia, 60, lembra-se da presença discreta do crítico no fundo da igreja onde se celebrou a missa de sétimo dia. Lembra-se também que os críticos Roberto Schwarz e Davi Arrigucci Jr. participaram da cerimônia.
Foi pela editora de Santa Cruz que talvez a melhor parte da produção da geração de Schwarz, a maioria alunos de Candido, veio a público. A livraria editou, ainda na década de 70, o hoje clássico "Ao Vencedor as Batatas", de Schwarz, além de diversas outras obras de ponta do pensamento social e literário brasileiro.
Essa produção continua a ser editada, agora em parceria entre a Duas Cidades e a ed. 34, na coleção "Espírito Crítico". Maria Antonia diz que o fechamento da livraria não afetará a atividade editorial. Mas a espécie de "centro cultural", a "livraria moderna" em que, diz o editor Augusto Massi, hoje na Cosacnaify, se podia encontrar casualmente com Candido ou com a professora de filosofia Marilena Chaui, não conseguiu acompanhar as mudanças do mercado, além de ter sido em parte vítima de sua própria localização "central".
Entre a seqüência de "causas" que levaram à decadência da livraria e que afastaram potenciais compradores, a viúva de Santa Cruz enumera a transferência de escolas do centro, como a Faculdade de Filosofia da USP, que antes funcionava na r. Maria Antonia, a degradação do centro e a diminuição de importância do francês como língua estrangeira no país -obras nesse idioma chegaram a representar quase 80% dos títulos da livraria.
"Depois, surgiu a internet", arremata Maria Antonia, referindo-se àquela que provavelmente foi a pá de cal num negócio especializado na difusão de obras estrangeiras.
As dificuldades financeiras, no entanto, vinham desde a década de 80. Candido chegou a publicar um artigo na Folha, em 1987, para tornar pública a pressão e ameaça de despejo que a ordem dos dominicanos fazia sobre a livraria.

Gesto feio
O crítico se tornou amigo de Santa Cruz quando este ainda pertencia à ordem e era conhecido como frei Benevenuto, na década de 50. A loja da livraria, comprada nessa época, continuou a pertencer aos padres quando Santa Cruz deixou a batina, em 1971 -uma década e meia depois, proprietários e locatário passaram da separação ao conflito.
Candido acusou os religiosos de preferirem "agir como uma imobiliária qualquer" e concluía o texto afirmando que o gesto de disputar o aluguel podia ser legal, mas era "triste e feio, muito feio".
Maria Antonia conta que, após a pressão pública do crítico, Santa Cruz e a ordem chegaram a um acordo, dando sobrevida à livraria.
A parceria entre crítico e livreiro, no entanto, não seria apenas prática mas também editorial. A professora titular de literatura na USP Walnice Nogueira Galvão, freqüentadora da loja e aluna de Candido na década de 70, lembra-se que foi ele que lhe "levou pela mão" para publicar um de seus livros pela Duas Cidades.
"Eu mais ou menos aproximei esse pessoal", diz o crítico em referência a seus alunos e à editora.
Tal associação informal se iniciou com o livro do próprio Candido "Parceiros do Rio Bonito", publicado inicialmente pela editora José Olympio, em 1964. "Quando a primeira edição se esgotou, perguntei ao José Olympio se ele queria reeditá-lo", conta o crítico. Mais tarde, em conversa informal, informou a Santa Cruz o resultado -negativo- da conversa. "Ele me disse que tinha interesse", e o livro ganhou vida nova, agora pela Duas Cidades.


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