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Memória/teatro
Dramaturgo José Vicente foi Rimbaud do Brasil
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Morto anteontem, aos
62 anos, de infarto, o
dramaturgo mineiro
José Vicente teve sua primeira
peça proclamada pelo principal
crítico do país como "um modelo de pureza" 40 anos atrás.
Quando isso acontece, o fato é
mais do que elogioso ao autor: é
sinal de maturidade de todo o
processo criativo, no qual o novo é abalizado pela experiência.
No entanto, a estréia de José
Vicente com "Santidade" não
ocorreu em 1967, pois um general na presidência o impediu,
considerando que qualquer
obra que associasse homossexualismo e religião ofenderia os
bons costumes.
Ora, o que o jovem autor fazia
era retomar, de igual para igual,
as inquietações de Nicholas-Arthur Rimbaud em "Un Coeur
Sous la Soutane", com consciência de sua pretensão: assinala a filiação com os nomes
dos personagens, Nicolau e Artur -truque que retomaria em
"O Assalto", com Vítor e Hugo,
que retoma questões do autor
do "Corcunda de Notre Dame".
Assim, embora compartilhassem com seus contemporâneos a mesquinha e inglória luta contra a censura, as 12 peças
de José Vicente se constróem
em diálogo com os principais
dramaturgos do século.
O que há de constrangedor
na censura é não só o fato de tolher por uma moral totalitária o
que há de autêntico na criação,
mas o de associá-la por muito
tempo ainda ao protesto, à simples insolência de ocasião. Nelson Rodrigues, graças a Sábato
Magaldi e a Antunes Filho, perdeu o sistemático rótulo de
pornográfico para merecer o de
arquetípico; da mesma forma, a
obra de Plínio Marcos tem sido
revista bem além dos limites
circunstanciais do "repórter de
um tempo mau".
A morte colhe José Vicente
bem em meio a uma semelhante reavaliação atemporal de
suas peças, graças sobretudo
aos esforços do ator Haroldo
Costa Ferrari e do diretor Marcelo Drummond, que retomaram a causa de Fauzi Arap e
Ivan de Albuquerque, no terreno sacro-profano do Oficina.
Sua pureza vem aparecendo inteira, bem além da provocação
e do deboche, como uma liturgia coerente e própria.
Livre das contingências do
tempo, sua obra tem a ganhar.
Que se reveja "Santidade" e "O
Assalto", que se remonte "Hoje
é Dia de Rock": tivemos um
Rimbaud no Brasil, e nunca será tarde para mergulharmos
em sua obra pura.
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