São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Memória/teatro

Dramaturgo José Vicente foi Rimbaud do Brasil

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Morto anteontem, aos 62 anos, de infarto, o dramaturgo mineiro José Vicente teve sua primeira peça proclamada pelo principal crítico do país como "um modelo de pureza" 40 anos atrás. Quando isso acontece, o fato é mais do que elogioso ao autor: é sinal de maturidade de todo o processo criativo, no qual o novo é abalizado pela experiência.
No entanto, a estréia de José Vicente com "Santidade" não ocorreu em 1967, pois um general na presidência o impediu, considerando que qualquer obra que associasse homossexualismo e religião ofenderia os bons costumes.
Ora, o que o jovem autor fazia era retomar, de igual para igual, as inquietações de Nicholas-Arthur Rimbaud em "Un Coeur Sous la Soutane", com consciência de sua pretensão: assinala a filiação com os nomes dos personagens, Nicolau e Artur -truque que retomaria em "O Assalto", com Vítor e Hugo, que retoma questões do autor do "Corcunda de Notre Dame".
Assim, embora compartilhassem com seus contemporâneos a mesquinha e inglória luta contra a censura, as 12 peças de José Vicente se constróem em diálogo com os principais dramaturgos do século.
O que há de constrangedor na censura é não só o fato de tolher por uma moral totalitária o que há de autêntico na criação, mas o de associá-la por muito tempo ainda ao protesto, à simples insolência de ocasião. Nelson Rodrigues, graças a Sábato Magaldi e a Antunes Filho, perdeu o sistemático rótulo de pornográfico para merecer o de arquetípico; da mesma forma, a obra de Plínio Marcos tem sido revista bem além dos limites circunstanciais do "repórter de um tempo mau".
A morte colhe José Vicente bem em meio a uma semelhante reavaliação atemporal de suas peças, graças sobretudo aos esforços do ator Haroldo Costa Ferrari e do diretor Marcelo Drummond, que retomaram a causa de Fauzi Arap e Ivan de Albuquerque, no terreno sacro-profano do Oficina. Sua pureza vem aparecendo inteira, bem além da provocação e do deboche, como uma liturgia coerente e própria.
Livre das contingências do tempo, sua obra tem a ganhar. Que se reveja "Santidade" e "O Assalto", que se remonte "Hoje é Dia de Rock": tivemos um Rimbaud no Brasil, e nunca será tarde para mergulharmos em sua obra pura.

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