São Paulo, terça-feira, 23 de setembro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

As indignações de Philip Roth


A conciliação é impossível ou improvável quando o mundo conspira para nos destruir

NOVA YORK - Vocês querem saber qual a minha idéia de inferno? Leiam as "Memórias Póstumas de Brás Cubas". O inferno é uma eternidade de memória: nós, do outro lado da margem, condenados a recordar, e a recordar, e a recordar. Uma sessão de psicanálise sem fim, onde não existe catarse possível. Apenas a obrigação cínica de revisitar o que fizemos e fomos.
Eis o tema do último livro de Philip Roth, que acaba de sair por estas bandas e foi lido de um fôlego só.
Philip Roth leu Machado? Mistério.
Mas o seu Marcus Messner, personagem principal de "Indignation" (indignação) (Houghton Mifflin, 233 págs.), relembra Brás Cubas pelo motivo mais simples: também Marcus relata a vida que teve depois de a vida cessar -ou, pelo menos, sob a influência da morfina terminal. E que vida é essa?
Marcus é um jovem em idade universitária. Vive em Newark, cidade natal de Roth. O pai é açougueiro e judeu, e açougueiro judeu no sentido mais ritual da palavra, ou seja, preparando carne kosher para a comunidade. Marcus cresceu com o cheiro de sangue. Mas cresceu também com a vontade libertadora de deixar esse cheiro para trás e, pela primeira vez na história da família, conseguir um diploma universitário, evitando assim marchar para a Guerra da Coréia.
Dito e feito: o rapaz começa os seus estudos em Newark, em pequena universidade "liberal". Mas o pai, uma espécie de Cassandra judia, começa a desenvolver uma particular paranóia com a segurança do filho.
Tudo é ameaça. Tudo é perigo. Os menores erros podem precipitar conclusões fatais, como é próprio na lógica da tragédia. E, nas profecias do pai, o filho pode acabar morto a qualquer momento. Por culpa dele.
Por culpa dos outros. Por culpa de algo. Por culpa de alguém.
Essa visão doentia e pessimista, que começa a ganhar contornos persecutórios, obrigará Marcus a mudar de escola. Abandonando Newark e rumando para Ohio, Marcus foge da sombra do pai para celebrar a sua independência libertadora.
Mas nunca libertária. Chegado à nova universidade, Marcus mantém precisamente os mesmos objetivos: estudar arduamente, conseguir o diploma e, pormenor fundamental, evitar a Guerra da Coréia.
Mas a contingência, palavra cara a Roth, acaba por se introduzir na vida ordeira e controlada de Marcus. Os colegas de quarto são maçadores, por ação ou omissão. Sinais de aviso de que o Diabo não dorme.
Depois, a paixão chega, mas chega personificada na pessoa errada: uma colega problemática, emocionalmente instável, sexualmente carnívora. A receita para o desastre.
E, no topo do bolo, o diretor da universidade que não compreende o individualismo militante e ateu do jovem Marcus. Aos olhos do diretor, Marcus surge como criatura anti-social e potencialmente destrutiva.
Em rigor, o comportamento ordeiro de Marcus não transporta qualquer erro ou vício; é apenas a prudência própria do judeu proletário e desenraizado que procura subir a corda sem cometer erros que precipitem a queda.
Mas as nossas ações não bastam para definir a nossa conduta; o julgamento e a ação dos outros são igualmente decisivos para determinar o nosso destino.
E o destino de Marcus será funesto: depois de um pequeno erro, as conseqüências serão trágicas. Exatamente como a Cassandra paterna profetizara. Marcus, expulso da universidade, acabará os dias na Guerra da Coréia. Acabará os dias trespassado pelas baionetas dos inimigos, como se fosse um animal de açougue. Retalhado. Ensopado em sangue. O sangue de que ele procurara fugir em vão.
Depois de "Fantasma Sai de Cena", um romance entediante e falhado que encerra a saga Zuckerman, Roth regressa à tona e confirma o que já escrevi nesta Folha (a respeito de "Homem Comum"): as menores obras de Roth são o melhor de Roth na fase final da sua carreira.
Não são exercícios preparatórios ou pausas recreativas, como se lê na crítica apedeuta; são obras maiores, e maiores pela concisão narrativa e pulsão trágica que as habita. E são também capazes de aprofundar a preocupação central da sua ficção: como conciliar a nossa conduta, a nossa liberdade, a nossa autonomia com as solicitações do mundo e dos outros, que continuamente nos seduzem e tentam?
A resposta de Roth adquire, em "Indignation", um sentido trágico impróprio para otimistas ou sentimentais: a conciliação é impossível ou improvável quando o mundo conspira para nos destruir.

jpcoutinho@folha.com.br


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