São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2006

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GUILHERME WISNIK

A "anarquitetura" de Matta-Clark


Seu ataque à arquitetura diz respeito à ilusão de ordem, perenidade e eficiência que nela se materializa

GORDON MATTA-CLARK é o artista que mais de perto "dialogou" com a arquitetura, na forma de um afrontamento. Perfurando e extraindo partes de edifícios, munido apenas de instrumentos manuais (como serras elétricas e picaretas), o artista americano tomou artefatos arquitetônicos como "ready-mades" que ele não apenas deslocava de seu contexto original, ressignificando-os, mas os mutilava por dentro, como numa colagem cubista às avessas e em grande escala.
Formado em arquitetura, Matta-Clark trouxe princípios da "land art", como o "site specific", para o interior da cena urbana: mais especificamente, os subúrbios nova-iorquinos. Partindo de operações simples, como cortar uma casa ao meio e com uma cunha fez metade tombar ligeiramente para o lado ("Splitting";74), chegou a "formalizações" complexas, em cortes semicirculares e espirais de lajes e paredes, como que a inscrever figuras geométricas vazias no interior de edifícios ("Office-Baroque"; 77, e "Circus"; 78).
Resultam daí espaços negativos, que reconstroem a percepção do ambiente à medida que embaralham as noções de verticalidade e horizontalidade, figura e fundo, ao mesmo tempo que expõem a compartimentação privada daqueles cômodos. Em outros casos, como no Pier 52, à beira do rio Hudson, abre fendas tanto no piso, em direção à água, quanto na cobertura, em direção ao céu, de modo a denunciar a compulsão da arquitetura a fechar-se em si mesma numa eterna "zona intermediária" ("Day's End"; 75).
Na verdade, o seu ataque à arquitetura diz respeito à ilusão de perenidade, eficiência e ordem que nela se materializa, tornando-a uma poderosa metáfora do status quo social. Agindo na direção contrária, o artista revela o caráter efêmero, precário e inútil da arquitetura, desconstruindo-a como linguagem. Integrante da cena underground e contracultural dos anos 60 e 70, marcada pela desrrepressão sexual e existencial e pela vitalidade dos guetos e do nomadismo de rua, Matta-Clark procurou revelar a irracionalidade dos processos urbanos escondidos atrás da aparente disciplina de edificações.
Reflexão que aparece em obras como "Fake Estates" (1973), em que compra parcelas mortas de terreno, invisíveis e inacessíveis (como um quadrado de 30 centímetros em um miolo de quadra), e faz uma fotomontagem incluindo as escrituras e um mapa de localização de suas propriedades.
Concebida a partir do tema "Como Viver Junto", a 27ª Bienal de SP baliza seus conceitos no experimentalismo das obras ambientais de Hélio Oiticica e Matta-Clark. No caso do artista americano, documentada através de alguns objetos, desenhos, seqüências de fotos e, sobretudo, de um conjunto expressivo de filmes que registram suas intervenções "anarquitetônicas".
Em 71, o artista recusou-se a participar da Bienal de SP em protesto contra o regime militar. É pena que hoje ele não esteja vivo para intervir diretamente no edifício projetado por Niemeyer, cujos vazios amebóides já são sugestões "anarquitetônicas" "avant la lèttre".


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