São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 2006

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NELSON ASCHER

A guerra dos sexos por outros meios


O que todo membro de nossa espécie insatisfeita quer (e com toda razão) é ser desejado por um acúmulo de atributos

UM SUJEITO corajoso ou imbuído de empirismo poderia, dia desses, experimentar se dirigir a uma mulher (sua consorte de longa data ou a nova candidata ao cargo) dizendo-lhe o seguinte:
"Meu anjo, você é feia, gorda, sem graça, desajeitada e não sabe se vestir. Além disso, nunca foi (ou não parece ser) grande coisa na intimidade, dá na vista que ultrapassou (bem mal) a meia-idade e, mesmo antes, convenhamos, não era do tipo que levava os homens a torcerem o pescoço quando passava em Ipanema. Ainda assim, eu te amo (ou quero sair com você) porque você é uma escritora brilhante ou uma poetisa inspirada ou uma pensadora profunda e original ou uma excelente artista plástica ou uma cirurgiã fantástica ou uma líder idealista e carismática ou uma empresária bem-sucedida e, em todo caso, é um ser humano inteligente, espirituoso e de bom caráter. Sendo um homem sensível que não se importa com o meramente superficial das aparências, prefiro você a qualquer ninfeta fútil , starlet semi-analfabeta ou top model vazia. E, desprezando a hipocrisia, estou certo de que você, que se encontra acima dos falsos elogios, vai se sentir recompensada por eu lhe dizer a verdade como ela é."
Caso alguém tenha peito (dos peludos) para arriscar o pescoço dessa maneira e obtenha sucesso, ou seja, sobreviva à abordagem acima agradando sua interlocutora, sugiro-lhe que relate os resultados à redação do "Livro Guinness dos Recordes". Afinal, "sensibilidade masculina" (estilo Anaïs Nin) tem hora e, se o sexo frágil reclama dos homens porque estes põem as aparências em primeiro lugar, é duvidoso que alguma mulher desejaria se sentir escolhida a despeito, não por causa, das suas. O que todo membro de nossa espécie insatisfeita quer (e com toda razão) é ser desejado por um acúmulo de atributos. Consciente de quão enganado posso estar, suspeito que a mulher arquetípica deseja que a queiram não porque é linda (embora saiba que é linda e adore ser reassegurada disto várias vezes por minuto), mas porque possui atributos diversos espirituais superiores. A alternativa ideal para a "bonita e burra" é, antes, a "bonita e brilhante".
Preocupações de ordem estética se arraigam tão fundo nos neurônios femininos quanto nos masculinos, pois, se assim não fosse, os atores de telenovelas seriam escolhidos sobretudo pela sua capacidade de atuar, os cantores de mais sucesso saberiam cantar e os gigolôs, todos eles baixinhos, gordinhos e carecas, se destacariam pelas dimensões de seu QI. Há, é claro, diferenças de gosto, e os critérios de beleza não são os mesmos para ambos os sexos. A única diferença relevante entre eles, porém, quando se trata de exigências estéticas, é que os homens as admitem e as mulheres, não.
Foi este o mistério que investiguei na coluna anterior. Por que uma professora universitária aparece com um surfista e insiste em convencer os colegas de que o tipo é um poeta? Por que uma doutora é flagrada com 1,90 m de músculos trabalhados, se bem que incapazes de acertar um subjuntivo, e declara às amigas que o que a seduziu foi a conversa ele? Por que tantas mulheres pregam o consumo de água e, enquanto degustam seu "grand cru", condenam nosso abuso de álcool? Minha conclusão, inteiramente de acordo com a "Navalha de Ockham", era singela: homens e mulheres buscam a mesma coisa, isto é, parceiros atraentes do sexo oposto. Se estes também forem inteligentes, talentosos, ricos, tanto melhor.
O que não implica dizer que homens e mulheres queiram o que querem de maneira idêntica. Homens têm uma queda pela variedade, enquanto as mulheres, até para poderem se dedicar a criar a prole em paz e segurança, requerem certo grau de estabilidade. Estas são, para um e para o outro lado, as metas mais difíceis de realizar. Quase qualquer mulher obteria, se o desejasse, homens diferentes a cada noite, desde que mantivesse baixo seu nível de exigência estética e nada lhes pedisse exceto o "one night stand" em questão. Homens, por seu turno, conseguem companhia estável e duradoura mais facilmente que as mulheres e, se for com papel passado, então nem se fala.
Existem mais amantes ocasionais à disposição de qualquer mulher e mais esposas potenciais esperando por qualquer homem. O desencontro é que cada qual quer o que o outro tem. Daí que, como em tudo que diz respeito às relações humanas, a palavra-chave seja negociação, que equivale, neste contexto, à guerra dos sexos travada por outros meios. Um lado concede aqui, o outro ali e a espécie se perpetua. Bom, pelo menos até o momento.


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