São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2007

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CECILIA GIANNETTI

O viajante cego

Escalar o monte Vesúvio era o tipo de diversão que fazia a cabeça do cara. Como fez essas e outras sem enxergar?

NUM TEMPO em que o drama de viajar não era o apagão aéreo, qualquer trajeto longo poderia significar dias de dores lombares excruciantes numa carroça puxada a cavalos em terreno irregular, ou meses enjoando num navio. Além de superar essas dificuldades comuns no século 19, o inglês James Holman tinha mais motivos que qualquer um para se gabar de ter dado a volta ao mundo.
Não só por ser cego. Mas por ter completado trajetos que outros abandonaram pelo meio e escrito com minúcias impressionantes sobre tudo o que conheceu somente por meio de seus outros sentidos.
Escalar sozinho o monte Vesúvio -como fez em junho de 1821- era o tipo de diversão que fazia a cabeça do cara.
Como fez essas e outras sem enxergar? Sua história foi recuperada pelo britânico Jason Roberts, colaborador do "Village Voice" e da Salon.com, em "A Sense of the World" (HarperCollins).
Holman também sofria de reumatismo e amargou cerca de dois anos sendo tratado como um inválido, antes que pudesse se jogar na aventura. A medicina disponível não oferecia alternativas de cura que não passassem por sessões de sangramentos, choques e sanguessugas -tudo inútil.
As dores reumáticas foram seu passaporte: os médicos decidiram que o Mediterrâneo e certas partes da Europa tinham condições climáticas que poderiam amenizar o sofrimento físico.
Com carta branca dos doutores, meteu o pé na estrada, começando pela França e engrenando viagem até ganhar fama como viajante e escritor, completando, em 1832, seu circuito mundial.
Recusava guias, mas era acompanhado às vezes por um amigo completamente surdo, Colebrook. Que ajudava a enriquecer os textos do viajante cego com detalhes visuais, e também gostava de descrever as mulheres que encontravam pelo caminho. A ajuda era bem recebida pelo viajante cego; não raro, Holman acabava caindo nas graças de belas condessas e outras patricinhas high-society da época, e era hospedado por elas.
Encontrou ainda o Pedestrian Traveler, sujeito andrajoso que levava no bolso cartas de recomendação assinadas por diversas autoridades e fez a pé boa parte de seu trajeto do Velho Mundo ao Novo Mundo.
Às vezes, aceitava uma carona de carroça ou de canoa nas travessias que não poderiam ser feitas de outra maneira.
Por conta de um mal-entendido, Holman chegou a ser preso na Sibéria e escapou da cadeia burlando a burocracia diplomática.
Entrava em regiões desconhecidas sem falar o idioma local e aprendia o básico da língua no tranco.
No continente africano, cruzou com um guerreiro indígena tatuado que podia ter acabado com seu barato. A julgar pelo nome -Cut Throat (corta-garganta)-, não tinha lá muito respeito pela vida alheia.
Mas Holman possuía a manha: ganhou a amizade do aborígene, sobreviveu e seguiu emendando um programa de índio no outro. Sem vôos atrasados.


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