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Música no Brasil é prisioneira da canção
Debate cultural ignora contribuição da produção contemporânea erudita
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são
seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman,
Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça
dele. A música erudita de nosso
tempo não existe para a classe
culta brasileira." Esse diagnóstico preciso foi fornecido pelo
compositor Gilberto Mendes.
Ele indicava uma estranha ausência no "sistema nacional das
artes": a ausência de debate e
interesse pela produção musical das últimas décadas. Mesmo comprar um CD de compositores fundamentais como
Brian Ferneyhough, György Ligeti ou de brasileiros como Flô
Menezes e Almeida Prado pode
ser tarefa impossível. Como se
essa produção não existisse e
nada tivesse a dizer.
Pode-se dizer que essa situação não é muito diferente em
outros países. Mas isto não é
verdadeiro. Mesmo que compositores americanos como
John Adams e Steve Reich recebam mais encomenda na Europa do que em seu país de origem, é inegável que a música
contemporânea tem um lugar
no interior do debate e na vida
cultural da América do Norte e
Europa. Podemos nos perguntar por que, apesar de esforços
como o Festival Música Nova,
isso não ocorreu entre nós.
Haverá céticos que dirão que
temos uma música popular que
é estudada em universidades.
Música que levou maestros como Kurt Mansur a dizer que
não precisamos de clássicos e
contemporâneos porque temos
boa produção popular.
Não se trata de reeditar aqui
uma querela bizantina entre
música popular e erudita, mas é
inegável que algo acontece
quando um país é incapaz de
ver, em uma música que não seja a popular, um momento fundamental de sua reflexão cultural. Da mesma forma que algo
de peculiar aconteceria se um
país reduzisse seu sistema literário à produção de crônicas.
Talvez seja o caso de se perguntar se a ideologia cultural
nacional não precisaria alimentar a visão de que música é
questão de expressividade, processo produtivo que brota quase "naturalmente". Linguagem
prisioneira de uma gramática
dos sentimentos que poderia
ser codificada no tempo de uma
canção. Mas o que significa
uma ideologia cultural para a
qual, fora da forma-canção, só
haveria a ausência da imediaticidade da vida? Ou por que nossa ideologia cultural prefere ignorar tudo o que não se submete às amarras da forma-canção?
Os vivos e os mortos
Mas pode-se dizer que, afinal, a música contemporânea já
não tem muita coisa a oferecer.
Seu grande momento teria sido
os anos 50 e 60, com John Cage,
Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, György Ligeti e Luciano Berio. O serialismo integral,
a Escola de Nova York e os que
giraram em torno desses dois
polos. Agora, depois da morte
de quase todos esses grandes
nomes não haveria muito mais
o que se esperar.
A produção
musical já não seria mais impulsionada pela elaboração de
pesquisas formais, mas pelo retorno ao tonalismo amistoso
através de trabalhos como os de
Philip Glass, Penderecki, Thomas Adès, só para citar alguns.
Mas esse argumento é falso e
uma observação atenta da produção atual mostra a continuidade de experiências intelectuais de grande envergadura.
Comecemos pelo que se tornou o último representante vivo da geração das vanguardas:
Pierre Boulez. Capaz de unir,
de maneira competente, três
funções que dificilmente andam juntas (intérprete, compositor e teórico), Boulez produz
grandes composições.
Lembremos de "Repons"
(1980-84), com sua capacidade
de resgatar traços da escritura
motívica em uma ambiente que
não lhe daria direito de cidadania, ou ainda de "Sur incises"
(1998), para três pianos, três
harpas e três percussionistas.
Por outro lado, é surpreendente como o século 20 conheceu uma tradição húngara de
compositores que chegou até
hoje constituindo uma escola
capaz de utilizar o tonalismo
sem as limitações de seu funcionamento como sistema. Talvez seja o caso de procurar
constituir uma linha, a partir
dessa problemática, que vai de
Béla Bartók a dois dos maiores
compositores dos últimos anos,
György Ligeti e György Kurtág.
O mesmo Ligeti que ainda
em 2003 apresentou o impressionante "Concerto de Hamburgo", para trompa e orquestra de câmara com sua exploração do timbre de trompas
criando massas sonoras compactas e de movimento quase
"vegetal". Da extensa obra de
Kurtág, que segue Ligeti nesta
capacidade de utilizar o sistema tonal como algo que ganha
expressão renovada quando
mostra não ter mais a força de
constituir unidades funcionais,
devemos salientar os "Jogos",
para piano e, principalmente
"Kafka-fragmente" (1986), para soprano e violino, uma peça
composta a partir do texto de
Kafka reduzido a fragmentos.
Como não se trata aqui de dar
uma lista completa dos compositores ainda vivos cuja produção é fundamental, mas só
mostrar como é falso o discurso
que afirma que as últimas décadas não produziram obras relevantes, vale terminar lembrando que mesmo no campo do retorno ao tonalismo é possível
deparar com bons compositores. Lembremos de Steve Reich
com seu "Triple quartet"
(1998), para quarteto de corda e
tapes que recupera o que havia
de melhor na saturação sonora
dos quartetos de Bartók através
de efeitos de sobreposição produzidos por tapes. Isto sem falar do trabalho com a coreógrafa Anna Teresa de Keersmaeker, prova maior da potencialidade gestual do minimalismo.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP
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