São Paulo, sexta-feira, 23 de outubro de 2009

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Música no Brasil é prisioneira da canção

Debate cultural ignora contribuição da produção contemporânea erudita

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira." Esse diagnóstico preciso foi fornecido pelo compositor Gilberto Mendes.
Ele indicava uma estranha ausência no "sistema nacional das artes": a ausência de debate e interesse pela produção musical das últimas décadas. Mesmo comprar um CD de compositores fundamentais como Brian Ferneyhough, György Ligeti ou de brasileiros como Flô Menezes e Almeida Prado pode ser tarefa impossível. Como se essa produção não existisse e nada tivesse a dizer.
Pode-se dizer que essa situação não é muito diferente em outros países. Mas isto não é verdadeiro. Mesmo que compositores americanos como John Adams e Steve Reich recebam mais encomenda na Europa do que em seu país de origem, é inegável que a música contemporânea tem um lugar no interior do debate e na vida cultural da América do Norte e Europa. Podemos nos perguntar por que, apesar de esforços como o Festival Música Nova, isso não ocorreu entre nós.
Haverá céticos que dirão que temos uma música popular que é estudada em universidades. Música que levou maestros como Kurt Mansur a dizer que não precisamos de clássicos e contemporâneos porque temos boa produção popular.
Não se trata de reeditar aqui uma querela bizantina entre música popular e erudita, mas é inegável que algo acontece quando um país é incapaz de ver, em uma música que não seja a popular, um momento fundamental de sua reflexão cultural. Da mesma forma que algo de peculiar aconteceria se um país reduzisse seu sistema literário à produção de crônicas.
Talvez seja o caso de se perguntar se a ideologia cultural nacional não precisaria alimentar a visão de que música é questão de expressividade, processo produtivo que brota quase "naturalmente". Linguagem prisioneira de uma gramática dos sentimentos que poderia ser codificada no tempo de uma canção. Mas o que significa uma ideologia cultural para a qual, fora da forma-canção, só haveria a ausência da imediaticidade da vida? Ou por que nossa ideologia cultural prefere ignorar tudo o que não se submete às amarras da forma-canção?

Os vivos e os mortos
Mas pode-se dizer que, afinal, a música contemporânea já não tem muita coisa a oferecer. Seu grande momento teria sido os anos 50 e 60, com John Cage, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, György Ligeti e Luciano Berio. O serialismo integral, a Escola de Nova York e os que giraram em torno desses dois polos. Agora, depois da morte de quase todos esses grandes nomes não haveria muito mais o que se esperar.
A produção musical já não seria mais impulsionada pela elaboração de pesquisas formais, mas pelo retorno ao tonalismo amistoso através de trabalhos como os de Philip Glass, Penderecki, Thomas Adès, só para citar alguns. Mas esse argumento é falso e uma observação atenta da produção atual mostra a continuidade de experiências intelectuais de grande envergadura. Comecemos pelo que se tornou o último representante vivo da geração das vanguardas: Pierre Boulez. Capaz de unir, de maneira competente, três funções que dificilmente andam juntas (intérprete, compositor e teórico), Boulez produz grandes composições.
Lembremos de "Repons" (1980-84), com sua capacidade de resgatar traços da escritura motívica em uma ambiente que não lhe daria direito de cidadania, ou ainda de "Sur incises" (1998), para três pianos, três harpas e três percussionistas.
Por outro lado, é surpreendente como o século 20 conheceu uma tradição húngara de compositores que chegou até hoje constituindo uma escola capaz de utilizar o tonalismo sem as limitações de seu funcionamento como sistema. Talvez seja o caso de procurar constituir uma linha, a partir dessa problemática, que vai de Béla Bartók a dois dos maiores compositores dos últimos anos, György Ligeti e György Kurtág.
O mesmo Ligeti que ainda em 2003 apresentou o impressionante "Concerto de Hamburgo", para trompa e orquestra de câmara com sua exploração do timbre de trompas criando massas sonoras compactas e de movimento quase "vegetal". Da extensa obra de Kurtág, que segue Ligeti nesta capacidade de utilizar o sistema tonal como algo que ganha expressão renovada quando mostra não ter mais a força de constituir unidades funcionais, devemos salientar os "Jogos", para piano e, principalmente "Kafka-fragmente" (1986), para soprano e violino, uma peça composta a partir do texto de Kafka reduzido a fragmentos.
Como não se trata aqui de dar uma lista completa dos compositores ainda vivos cuja produção é fundamental, mas só mostrar como é falso o discurso que afirma que as últimas décadas não produziram obras relevantes, vale terminar lembrando que mesmo no campo do retorno ao tonalismo é possível deparar com bons compositores. Lembremos de Steve Reich com seu "Triple quartet" (1998), para quarteto de corda e tapes que recupera o que havia de melhor na saturação sonora dos quartetos de Bartók através de efeitos de sobreposição produzidos por tapes. Isto sem falar do trabalho com a coreógrafa Anna Teresa de Keersmaeker, prova maior da potencialidade gestual do minimalismo.

VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP



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