São Paulo, sexta-feira, 23 de novembro de 2001

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TEATRO/"OS LUSÍADAS"

Montagem honra produção de Ruth Escobar

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Márcio Aurélio tirou os "Lusíadas" do porão. Arejada pelo oxigênio puro da concepção cênica de Daniela Thomas, que expõe estruturas com um mínimo de recursos, e tornada ágil pela aeróbica adaptação feita por Valderez Cardoso Gomes, que alinhava o essencial fazendo brotar leituras novas, a peça surge dessa vez quase como um Mahabarata da língua portuguesa -um nosso mito de origem que por tempo demais dormiu na obrigatoriedade empoeirada dos livros de escola.
Em vez de cenografar uma caravela, mostra o balanço do mar pelo corpo dos navegantes. É do viajante, e não da viagem, que se quer tratar aqui, e mais de sua solidão que sua coragem, mais de seus sonhos que de seus feitos.
Assim, no lugar daquela pesada declamação exaltando o colonialismo português, está a marcação exata e sutil do desejo a qual costura o espetáculo.
Antes mesmo de soar o terceiro sinal, já estão em cena os marinheiros a se despedirem das esposas, sem saber que a recompensa derradeira que receberão por se lançar a um desejo tão imenso de novos mares será chegar à Ilha dos Amores, ou seja, voltar ao amor físico que haviam sacrificado no início.
Povo de Vênus, os Lusos nos legaram a dialética do desejo e da saudade, da reinvenção de si e do exílio, segundo a lírica do abandono e do desencanto que vai desde Camões até Gonçalves Dias, até Chico Buarque, até Renato Russo.
Esse é nosso herói primordial, o "fraco humano" sobrevivente de naufrágios, que é Adamastor traído pelo amor a Tétis, Inês de Castro morta pela política e o próprio Camões que, tal o velho do Restelo, enrouquece a voz por cantar a gente endurecida.
Focada assim no indivíduo, e não no coletivo, a montagem se apóia em atores que não perdem sua marca própria.
Patrícia Franco, por um exemplo entre muitos, já tem desde o início a beleza e elegância frágil que será a de Inês de Castro. Eduardo Conde carrega com energia não só Gama, como o velho do Restelo, as duas faces da moeda, e só lhe falta a limpidez de dicção com a qual João Carlos Andreazza transforma cenas difíceis como a história de Portugal narrada ao rei de Melinde em uma verdadeira cena didática brechtiana, ágil, divertida e emocionante.
Brechtianas são também as "paradas" étnicas que caracterizam a passagem por Moçambique, Melinde e Índia, com o exótico bem calibrado de cores e adereços contrastando com o branco astronáutico do figurino dos navegantes e o negro eclesiástico dos deuses do Olimpo, no eficiente trabalho de André Cortez.
A sólida pesquisa se faz presente também na dança indiana levada com encantamento e humor por Zuzu Abu e pela bela voz de Marcello Bossechar, apoiados na competência de Magda Pucci.

Os marinheiros e o coro
Um só coro se ergue nessa montagem, mas ele é chave para a ousadia que a permeia. Contagiando-se progressivamente pela conquista do Oriente, os marinheiros cantam um hino que soa estranhamente familiar.
Quem o reconhece ganha um calafrio de horror, pois trata-se de "Tomorrow Belongs to Me", o hino nazista da antológica cena de "Cabaret", de Bob Fosse, na qual um menino loiro aparece demonstrando a fascinação coletiva pelo fascismo.
Assim, como prevenira o velho do Restelo, o desejo de glória levou Gama às Índias para em seguida destruí-las pelo colonialismo português.
O desejo, fortalecendo-se no coletivo, pode levar à guerra que devora o exótico. Tal leitura não deprecia os Lusíadas, ao contrário: evitando a mera exaltação de um clássico que já estaria morto se não pudesse ser relido, torna-o contemporâneo desta última guerra. Dessa forma, pela liberdade e inteligência, esta versão capitaneada por Márcio Aurélio honra finalmente a assinatura de quem a produziu: Ruth Escobar.


Os Lusíadas
    
Texto: Valderez Cardoso Gomes
Direção: Márcio Aurélio
Com: Eduardo Conde, João Carlos Andreazza e outros
Onde: Estação Júlio Prestes - sala Estação das Artes (pça. Júlio Prestes, s/nš, tel. 0/xx/11/3361-2379)
Quando: de qua. a sex., 20h30; sáb., 21h; dom., 19h; até 23/12
Quanto: R$ 30 e R$ 40



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