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TEATRO/"OS LUSÍADAS"
Montagem honra produção de Ruth Escobar
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Márcio Aurélio tirou os
"Lusíadas" do porão. Arejada pelo oxigênio puro da concepção cênica de Daniela Thomas, que expõe estruturas com
um mínimo de recursos, e tornada ágil pela aeróbica adaptação
feita por Valderez Cardoso Gomes, que alinhava o essencial fazendo brotar leituras novas, a peça surge dessa vez quase como um
Mahabarata da língua portuguesa
-um nosso mito de origem que
por tempo demais dormiu na
obrigatoriedade empoeirada dos
livros de escola.
Em vez de cenografar uma caravela, mostra o balanço do mar pelo corpo dos navegantes. É do viajante, e não da viagem, que se
quer tratar aqui, e mais de sua solidão que sua coragem, mais de
seus sonhos que de seus feitos.
Assim, no lugar daquela pesada
declamação exaltando o colonialismo português, está a marcação
exata e sutil do desejo a qual costura o espetáculo.
Antes mesmo de soar o terceiro
sinal, já estão em cena os marinheiros a se despedirem das esposas, sem saber que a recompensa
derradeira que receberão por se
lançar a um desejo tão imenso de
novos mares será chegar à Ilha
dos Amores, ou seja, voltar ao
amor físico que haviam sacrificado no início.
Povo de Vênus, os Lusos nos legaram a dialética do desejo e da
saudade, da reinvenção de si e do
exílio, segundo a lírica do abandono e do desencanto que vai desde Camões até Gonçalves Dias,
até Chico Buarque, até Renato
Russo.
Esse é nosso herói primordial, o
"fraco humano" sobrevivente de
naufrágios, que é Adamastor traído pelo amor a Tétis, Inês de Castro morta pela política e o próprio
Camões que, tal o velho do Restelo, enrouquece a voz por cantar a
gente endurecida.
Focada assim no indivíduo, e
não no coletivo, a montagem se
apóia em atores que não perdem
sua marca própria.
Patrícia Franco, por um exemplo entre muitos, já tem desde o
início a beleza e elegância frágil
que será a de Inês de Castro.
Eduardo Conde carrega com
energia não só Gama, como o velho do Restelo, as duas faces da
moeda, e só lhe falta a limpidez de
dicção com a qual João Carlos
Andreazza transforma cenas difíceis como a história de Portugal
narrada ao rei de Melinde em
uma verdadeira cena didática
brechtiana, ágil, divertida e emocionante.
Brechtianas são também as "paradas" étnicas que caracterizam a
passagem por Moçambique, Melinde e Índia, com o exótico bem
calibrado de cores e adereços contrastando com o branco astronáutico do figurino dos navegantes e o negro eclesiástico dos deuses do Olimpo, no eficiente trabalho de André Cortez.
A sólida pesquisa se faz presente
também na dança indiana levada
com encantamento e humor por
Zuzu Abu e pela bela voz de Marcello Bossechar, apoiados na
competência de Magda Pucci.
Os marinheiros e o coro
Um só coro se ergue nessa montagem, mas ele é chave para a ousadia que a permeia. Contagiando-se progressivamente pela conquista do Oriente, os marinheiros
cantam um hino que soa estranhamente familiar.
Quem o reconhece ganha um
calafrio de horror, pois trata-se de
"Tomorrow Belongs to Me", o hino nazista da antológica cena de
"Cabaret", de Bob Fosse, na qual
um menino loiro aparece demonstrando a fascinação coletiva
pelo fascismo.
Assim, como prevenira o velho
do Restelo, o desejo de glória levou Gama às Índias para em seguida destruí-las pelo colonialismo português.
O desejo, fortalecendo-se no coletivo, pode levar à guerra que devora o exótico. Tal leitura não deprecia os Lusíadas, ao contrário:
evitando a mera exaltação de um
clássico que já estaria morto se
não pudesse ser relido, torna-o
contemporâneo desta última
guerra. Dessa forma, pela liberdade e inteligência, esta versão capitaneada por Márcio Aurélio honra finalmente a assinatura de
quem a produziu: Ruth Escobar.
Os Lusíadas
Texto: Valderez Cardoso Gomes
Direção: Márcio Aurélio
Com: Eduardo Conde, João Carlos
Andreazza e outros
Onde: Estação Júlio Prestes - sala
Estação das Artes (pça. Júlio Prestes, s/nš,
tel. 0/xx/11/3361-2379)
Quando: de qua. a sex., 20h30; sáb., 21h;
dom., 19h; até 23/12
Quanto: R$ 30 e R$ 40
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