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CARLOS HEITOR CONY
Ainda que não olhemos para trás
Faz de conta que tomo a tua
mão: o barranco é pequeno
mas grande é a vista que se vê daqui. Lá estão os açudes, dois lagos
abertos no fim da estrada. Não,
não são azuis como parecem. O
azul que estamos vendo é o do céu
que neles se reflete. Do outro lado,
a mataria do Cruzeiro despeja
sua sombra esverdeada sobre as
águas. Sim, e há naturalmente o
Cruzeiro, o morro do Cruzeiro.
Antigamente, era cemitério de
escravos. Agora cresceram as embaúbas e quaresmeiras. E um dia
vieram os padres e colocaram
uma cruz lá em cima. Eu era pequenino e, à noite, ouvia vozes
saindo dessas matas. Os mais velhos diziam que eram gemidos
dos escravos mortos. E eu tinha
medo. E sabia que este medo, feito
de árvores e gemidos, já era o medo, também, de te perder.
Agora, a sombra da nuvem alcança a parte superior da cachoeira. Era proibido tomar banho naquelas águas, as mesmas
águas que o sol ainda ilumina
neste final de tarde. Naquela pedra redonda, coberta de musgo, li
os primeiros livros proibidos.
Ema Bovary e Ana Karenina,
Werther e Cartola, Francesca de
Rimini e Paolo Malatesta
-amores proibidos, corpos que
se proibiam.
Aliás, tudo ali era proibido, livros e águas. E depois de ler amores clandestinos e violentos, ia esfriar a adolescente carne naquelas -também- proibidas
águas. E já sabia que tu também
me serias proibida.
Os milharais de agora não são
diferentes dos milharais daquele
tempo. Parecem os mesmos, mesmas as espigas, mesmas as silhuetas que o mesmo vento açoita e
verga. Um dia associei os milharais à idéia da fecundidade. E
achava os milharais generosos e
bons e me sentia generoso e bom,
tão bom e generoso que um dia
poderia te merecer.
Ali o bosque. Tomo tua mão novamente, para que pulemos o pequeno riacho que embebeda a floresta que aqui começa. E há o
bambual compacto e verde que se
atira para dentro do rio e marca o
início da orla do bosque.
Em um daqueles bambus, certamente no mais velho e triste, há o
meu nome gravado. Deixei um
espaço para um dia completar
com o teu nome. Na carne do
bambu e na minha carne, eu sabia que virias e já te esperava.
Não sei se devo mostrar-te isto
aqui. Parece uma casa por fora,
uma casa branca e abandonada,
oca como o ventre de um fantasma sem vísceras. É uma capela.
Naquele nicho vazio havia um sino. Um sino que tocava nas manhãs e nas tardes. Aqui rezei durante dias e noites, rezei maquinalmente, nem sei a quem, pedindo não sei o quê.
Hoje -agora que sinto a tua
mão na minha- lembro que naquele tempo eu já te pedia. E esperava por ti, sabendo que tu virias.
Passemos por aqui. É a Fonte do
Menino. Quando aqui vim pela
primeira vez, já era a fonte do
menino. Diziam que um menino
se afogou num poço que antigamente havia ao lado. Naquele
tempo, sentia repugnância de beber daquela água que assassinara
um menino, um menino talvez
como eu.
Mas vinha de longe às vezes,
castigado pelo sol das serras. Deixava então que a cabeça esfriasse
ao contato dessa água fria, saída
das entranhas da terra que cheirava como um vegetal, um cheiro
de bambu e de milho jovem, cheiro primitivo que só encontraria
de novo quando cheirei teu corpo
e te sabia minha.
A manhã em que me perdi na
mata, custei a encontrar o caminho de volta, até que descobri o
riacho e fui seguindo ao contrário
das águas e vim dar nesta fonte.
Mergulhei inteiro nela, até que a
respiração e o medo se acalmassem. Tal como agora, quando
meu medo e meu cansaço repousam em teu corpo e se cansa de
novo, saciando novas cobiças.
Faz de conta, enfim, que terminamos no mesmo local onde
-certa manhã- terminei minha adolescência. Olhemos mais
uma vez os açudes. Agora estão a
nossos pés. E são como todos os
açudes do mundo. Tomemos esta
canoa -é a mesma do meu tempo, veio de longe, trazida num
carro de boi. A madeira está rachada, a pintura é velha. O nome
está apagado na proa e na minha
memória.
Lembro que esta canoa tinha
um nome então, mas é melhor
que agora não tenha nome algum. E lembro que ao cair de
uma tarde igual a esta, tomei a
canoa anônima e deitei-me ao
fundo. Deixei que o meu peso servisse de leme e fiquei olhando este
céu, este Cruzeiro, estas matas. E
aquele sino, que agora não existe
mais, tocou de repente.
Vamos fazer novamente este
passeio. Deitemos no fundo da canoa e deixemos que o nosso peso
nos leve para os estreitos limites
deste mar contido pelas matas. O
sino não tocará, é certo. Mas não
importa.
Se um dia tivermos necessidade
de nos levantar, de irmos embora,
um para cada lado, não choremos sobre nosso passado. E ainda
que não olhemos para trás, teremos para sempre este chão cheirando ao bambual verde, esta canoa sem nome que apodrecerá na
água, esta canoa fatigada que foi
nosso leito e nossa mesa, onde repousamos nosso desejo e matamos nossa fome.
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