São Paulo, sexta-feira, 23 de novembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Ainda que não olhemos para trás

Faz de conta que tomo a tua mão: o barranco é pequeno mas grande é a vista que se vê daqui. Lá estão os açudes, dois lagos abertos no fim da estrada. Não, não são azuis como parecem. O azul que estamos vendo é o do céu que neles se reflete. Do outro lado, a mataria do Cruzeiro despeja sua sombra esverdeada sobre as águas. Sim, e há naturalmente o Cruzeiro, o morro do Cruzeiro.
Antigamente, era cemitério de escravos. Agora cresceram as embaúbas e quaresmeiras. E um dia vieram os padres e colocaram uma cruz lá em cima. Eu era pequenino e, à noite, ouvia vozes saindo dessas matas. Os mais velhos diziam que eram gemidos dos escravos mortos. E eu tinha medo. E sabia que este medo, feito de árvores e gemidos, já era o medo, também, de te perder.
Agora, a sombra da nuvem alcança a parte superior da cachoeira. Era proibido tomar banho naquelas águas, as mesmas águas que o sol ainda ilumina neste final de tarde. Naquela pedra redonda, coberta de musgo, li os primeiros livros proibidos. Ema Bovary e Ana Karenina, Werther e Cartola, Francesca de Rimini e Paolo Malatesta -amores proibidos, corpos que se proibiam.
Aliás, tudo ali era proibido, livros e águas. E depois de ler amores clandestinos e violentos, ia esfriar a adolescente carne naquelas -também- proibidas águas. E já sabia que tu também me serias proibida.
Os milharais de agora não são diferentes dos milharais daquele tempo. Parecem os mesmos, mesmas as espigas, mesmas as silhuetas que o mesmo vento açoita e verga. Um dia associei os milharais à idéia da fecundidade. E achava os milharais generosos e bons e me sentia generoso e bom, tão bom e generoso que um dia poderia te merecer.
Ali o bosque. Tomo tua mão novamente, para que pulemos o pequeno riacho que embebeda a floresta que aqui começa. E há o bambual compacto e verde que se atira para dentro do rio e marca o início da orla do bosque.
Em um daqueles bambus, certamente no mais velho e triste, há o meu nome gravado. Deixei um espaço para um dia completar com o teu nome. Na carne do bambu e na minha carne, eu sabia que virias e já te esperava.
Não sei se devo mostrar-te isto aqui. Parece uma casa por fora, uma casa branca e abandonada, oca como o ventre de um fantasma sem vísceras. É uma capela. Naquele nicho vazio havia um sino. Um sino que tocava nas manhãs e nas tardes. Aqui rezei durante dias e noites, rezei maquinalmente, nem sei a quem, pedindo não sei o quê.
Hoje -agora que sinto a tua mão na minha- lembro que naquele tempo eu já te pedia. E esperava por ti, sabendo que tu virias.
Passemos por aqui. É a Fonte do Menino. Quando aqui vim pela primeira vez, já era a fonte do menino. Diziam que um menino se afogou num poço que antigamente havia ao lado. Naquele tempo, sentia repugnância de beber daquela água que assassinara um menino, um menino talvez como eu.
Mas vinha de longe às vezes, castigado pelo sol das serras. Deixava então que a cabeça esfriasse ao contato dessa água fria, saída das entranhas da terra que cheirava como um vegetal, um cheiro de bambu e de milho jovem, cheiro primitivo que só encontraria de novo quando cheirei teu corpo e te sabia minha.
A manhã em que me perdi na mata, custei a encontrar o caminho de volta, até que descobri o riacho e fui seguindo ao contrário das águas e vim dar nesta fonte. Mergulhei inteiro nela, até que a respiração e o medo se acalmassem. Tal como agora, quando meu medo e meu cansaço repousam em teu corpo e se cansa de novo, saciando novas cobiças.
Faz de conta, enfim, que terminamos no mesmo local onde -certa manhã- terminei minha adolescência. Olhemos mais uma vez os açudes. Agora estão a nossos pés. E são como todos os açudes do mundo. Tomemos esta canoa -é a mesma do meu tempo, veio de longe, trazida num carro de boi. A madeira está rachada, a pintura é velha. O nome está apagado na proa e na minha memória.
Lembro que esta canoa tinha um nome então, mas é melhor que agora não tenha nome algum. E lembro que ao cair de uma tarde igual a esta, tomei a canoa anônima e deitei-me ao fundo. Deixei que o meu peso servisse de leme e fiquei olhando este céu, este Cruzeiro, estas matas. E aquele sino, que agora não existe mais, tocou de repente.
Vamos fazer novamente este passeio. Deitemos no fundo da canoa e deixemos que o nosso peso nos leve para os estreitos limites deste mar contido pelas matas. O sino não tocará, é certo. Mas não importa.
Se um dia tivermos necessidade de nos levantar, de irmos embora, um para cada lado, não choremos sobre nosso passado. E ainda que não olhemos para trás, teremos para sempre este chão cheirando ao bambual verde, esta canoa sem nome que apodrecerá na água, esta canoa fatigada que foi nosso leito e nossa mesa, onde repousamos nosso desejo e matamos nossa fome.


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