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CONTARDO CALLIGARIS
"O Céu de Suely"
"Céu" não conta uma tragédia da miséria; é "apenas" um filme sobre a dificuldade de viver
ESTREOU NA sexta passada "O
Céu de Suely", de Karim Aïnouz (o diretor de "Madame
Satã").
É a história de Hermila, uma jovem que, junto do namorado Mateus, deixou sua Iguatu natal, no
Ceará, para tentar a vida em São
Paulo. Dois anos mais tarde, eles decidem voltar. Hermila (a notável e
homônima Hermila Guedes) chega
a Iguatu com um filho nos braços e
espera a reunião iminente com Mateus, que ficou em São Paulo por
mais um tempo. Mas Mateus não
comparece. Hermila quer ir embora
de novo (e não atrás do namorado).
Para arrumar o dinheiro necessário,
ela organiza uma rifa; o prêmio é
uma noite no Paraíso com ela (que,
para a rifa, mudou de nome: agora é
Suely).
O filme é imperdível, porque é absolutamente "justo": raramente
uma história me foi contada de uma
maneira e num tom tão convincentes e tão próximos da vida.
Não sabemos bem por que Hermila e Mateus emigraram. Não foi fugindo da miséria. Talvez seja impossível viver em Iguatu (ou onde quer
que seja, aliás) sem querer, um dia,
colocar o pé na estrada.
Não sabemos bem por que eles
quiseram voltar, mas um cartaz na
saída da cidade anuncia: "Aqui começa a saudade de Iguatu". É verdade que uma inexplicável vontade de
voltar sempre espreita, inevitavelmente, quem deixou o lugar que lhe
foi atribuído pelo destino.
Por que Hermila não decidiria ficar em Iguatu? Afinal, lá ela tem
amigas, a avó que cuida do netinho e
até um novo namoro. Aviso: quem
foi embora uma vez nunca mais pára
de oscilar entre a saudade e a tentação da viagem.
Quando Hermila decide se rifar,
pouco ou nada nos é dito sobre seu
conflito interior; só seus sorrisos
forçados falam da tênue fronteira
entre o prazer de seduzir e o asco de
se oferecer.
A força do filme está nesse pudor,
graças ao qual os personagens se
tornam curiosamente familiares,
próximos da gente. Pois não há desesperos, tangos ou tragédias que
transformem suas gestas num espetáculo ou numa farsa.
Conhecia a sinopse de "O Céu de
Suely" há tempos, pela imprensa.
Antes de assistir ao filme de Aïnouz,
quis rever um antecedente italiano
dos anos 70, em que é contada a história de uma mulher (Sofia Loren)
que se rifa. Trata-se de um filme em
episódios, "Boccaccio 70", e o episódio em questão, "A Rifa", é dirigido
por Vittorio de Sica com roteiro de
Cesare Zavattini. Os nomes de De
Sica e Zavattini são associados ao
período mágico do neo-realismo do
cinema italiano (De Sica assinou
obras-primas: "Ladrões de Bicicletas" e, justamente com roteiro de
Zavattini, "Umberto D"). Ora, o glorioso neo-realismo italiano dos anos
50 pariu, nos anos 70, uma proliferação de chanchadas, em que, digamos
assim, o que sobrava de "realismo"
era uma transformação grotesca e
cínica da vida. Ou seja, a prova de
que a realidade estava na tela consistia na vulgaridade risível das histórias e dos personagens.
Esse declínio cultural tem suas explicações: o neo-realismo italiano
dos anos 50 foi a obra de uma geração para quem o pós-guerra era brutal, miserável, mas animado por
uma esperança que encorajava a levar o mundo a sério. Depois da decepção do "milagre italiano" dos
anos 60 (que viu o triunfo de uma
"elite" sinistra e gananciosa), aparentemente, só dava para zombar.
Era assim: o cinema americano nos
mostrava os heróis (da história ou
do cotidiano, tanto faz), e a nós, que
tínhamos perdido a chance de sermos heróis, sobrava sermos palhaços. Uma parte do público achava
engraçado, ria ao se ver nesse espelho deformante. Outros (eu entre
eles) achavam desesperador e ficavam, como Hermila, com vontade
de ir embora.
Faça a experiência: compare os
compradores dos bilhetes da rifa no
filme de Aïnouz e no de De Sica. Os
compradores de "O Céu de Suely"
são complexos, divididos, seu desejo
é contaminado pela vergonha e pelo
mal-estar; alguns se indignam com a
proposta. Os compradores de De Sica são estereótipos de idiotice, uma
massa de farsantes.
Teria sido fácil cair na mesma armadilha e apresentar os compradores da rifa de Suely como caretas tragicômicas, como um bando de peões
bêbados, desdentados e assanhados
(alguma lembrança do cinema brasileiro do passado?).
Mas o filme de Aïnouz não é uma
tragicomédia da miséria, não conta
um fato grotesco do subdesenvolvimento. É "apenas" um filme tocante
sobre a dificuldade de viver.
ccalligari@uol.com.br
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