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ARTIGO
O peso de três escombros asfixia o teatro brasileiro
MAURÍCIO PARONI DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
São Paulo cresce e deixa escombros por onde passa.
Nossa política cultural faz o mesmo. As principais leis de incentivo
que alimentam todos os níveis da
ação produtiva -governo, produtores, artistas- deixam ruínas
sem valor histórico.
Não discuto aqui outras áreas
culturais ou cidades que não conheço. Muita coisa parece ter dado certo no cinema, por exemplo.
Mas, já que estamos mudando de
governo, gostaria de apontar três
escombros que asfixiam o nosso
teatro. E para removê-los não precisamos da autorização de Bush,
que felizmente se lixa para essas
coisas.
1. Nas cidades onde, em dado
momento histórico, ocorreu a
mágica cumplicidade entre multiplicidade e utopia civilizatória, a
população se integrava com o teatro ao estar próxima dos locais de
espetáculo e ao zelar por sua integridade arquitetônica. Era coisa
de todos.
O Globe Theatre e outros teatros da Londres elisabetana existiram enquanto neles havia atividade teatral com significado concreto. Ali, o entretenimento veiculava e professava a liberdade, o sonho, a utopia. O período obscurantista de Cromwell, do fanatismo puritano e da peste se encarregou de destruir aqueles edifícios e
tudo o que representavam.
Isso não está tão longe do Brasil
como parece. O uso dos espaços
citadinos do Teatro da Vertigem
possui o significado concreto
mencionado acima. Essa riqueza
precisará de um endereço, de um
referencial público para o que foi
construído artisticamente.
Em nossos dias, Paris deu um
grande exemplo a propósito. Incentivou a divisão pública do tesouro teatral resultante das peregrinações de Peter Brook, atraindo-o para o Théatre des Bouffes
du Nord, um edifício decrépito e
periférico. A inteligência do gestor cultural chegou antes do dinheiro, que veio depois. O seu talento foi multiplicado mais do
que quando dirigia na Royal Shakespeare Company, o mais rico
teatro inglês.
Não vejo porque aceitamos ficar
atrás de Paris. Há muito talento
nos artistas de teatro brasileiros. E
um talento heróico, subnutrido
pelo depauperamento intelectual,
pela perfumaria tecnológica e pela gestão antidemocrática dos espaços teatrais.
Os teatros que significaram alguma coisa para nós foram quase
todos destruídos; aqueles que sobraram foram restaurados e são
como limbos dantescos, separados como estão da população. O
Oficina ainda continua vivo somente graças à determinação de
seus integrantes, que é digna de
heróis de Ésquilo.
Na música, há a Sala São Paulo e
o Teatro São Pedro. No teatro, há
o quê? Há a tentativa inteligente
da Prefeitura de reconstituir socialmente a zona central da cidade. Chega a ceder alguns espaços a
grupos de teatro. Entretanto qual
conteúdo veicular ali, se os artistas brasileiros são forçados a serem heróis, em vez de criarem heróis? Morre a profissão e sobrevive o sacerdócio.
2. Serei um louco furioso, mas
acredito nisto: o teatro sempre reciclou a ignorância. Dela se nutriu
e com ela ficou forte. No Globe, a
maioria do público era analfabeta.
Analfabetos concretizam melhor
e mais rápido as palavras de seus
interlocutores. Por isso Shakespeare não abaixava o nível daquilo que fazia. Na commedia dell'arte, os atores eram também literatos cultíssimos. Estudavam Platão
para concertar trechos de amor e
de ódio.
Ao assistir a aparições de demônios, o público sentia medo real
da idéia do demônio, não do demônio. A diferença é sutil, mas
fundamental, é a mesma entre um
teatro e um templo de fanáticos. A
comunicação de idéias se dava
graças ao domínio artesanal dos
atores, que se servia da ignorância, mas não a propagava.
Sem artesanato não há teatro;
artesanato se aprende nas escolas;
as escolas de teatro no Brasil são
caríssimas, frequentadas e mantidas por uma classe média obtusa.
Os professores e uma minoria
mais inteligente são atropelados
por um sistema perverso que ensina a lógica da mendicância. Termina-se, então, por cultuar, construir e difundir uma estética de
mau gosto e baixo nível, fundeada
no preconceito.
3. Um dia, o ser humano percebeu dentro de si uma força secreta, íntima e imaterial. Ela tinha o
poder de subjugar racionalmente
as ações de seu corpo. A tal mistério deu o nome de "alma". Era
igual a ele próprio: desejava, esperava, sonhava, exigia existir para o
outro. Projetou-a nos objetos, nos
animais e, enfim, no outro.
O passo seguinte foi se mimetizar como objeto, vestir-se com a
pele dos animais, mascarar-se
com a face do outro. Esse universo, real e irreal ao mesmo tempo,
materializou as agitações de sua
"alma". Muitos gostavam de assistir ao fenômeno. Era útil.
Assim começou o teatro entre
gregos, índios, negros, arianos.
Admitindo ou não, somos seus
herdeiros. Esse atestado de civilização, mesmo separado da religião, é sagrado e público.
Temos passado longe, muito
longe, da civilização. Promovem-se "curtos-circuitos de modernidade". Financiam-se espetáculos
caríssimos por meio de leis de renúncia fiscal em que o grande beneficiário é o marketing de empresas. Rotula-se tudo isso de teatro enquanto indústria cultural.
Esta, se fosse cultural mesmo, estaria falida sem mesmo ter começado a existir.
A renúncia fiscal não é nociva
em si. É um dos meios para se empregar dinheiro público no teatro.
Mas seria preciso ter a honestidade de admitir que esse dinheiro é
público. O governo presta contabilidade, mas não pode prestar
contas de para onde vão tais recursos, simplesmente porque ele
se omite da decisão real. Quem
decide são departamentos de
marketing de empresas; elas escolhem qual artista ou atividade irão
patrocinar. As empresas não têm
culpa. A lei o permite e incentiva.
Na prática, as companhias teatrais com idéias concretas têm vida curta. A maioria nem nasce. Isso não é planejamento cultural, é
fugir da responsabilidade da gestão política. Entre privatizar e pulverizar o senso de Estado, há
grande diferença.
A ditadura minou o teatro com
a censura. O modelo cultural que
se seguiu até aqui tratou essa instituição antiga -que necessita de
preservação, renovação e vida citadina- como uma coisa velha,
maquiando-a apenas.
O peso desses escombros asfixia
silenciosamente o teatro brasileiro. Fortalece-se a selvageria em
que já vivemos. Nesse ritmo, será
normal topar com cambistas oferecendo ingressos para ver assassinatos ao vivo nas esquinas. Por
tédio.
Maurício Paroni de Castro, 41, é diretor teatral, professor residente na
RSAMD (Royal Scottish Academy of Music and Drama) e associado à Companhia
Suspect Culture de Glasgow, Escócia
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