São Paulo, sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

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Mentor do neoconcreto fala sobre arte e política na Sabatina Folha

Ferreira Gullar ilumina sua poesia

Fernando Donasci/Folha Imagem
O poeta Ferreira Gullar, centro da 10ª Sabatina Folha


DA REPORTAGEM LOCAL

Quando indagado na rua por leitores e fãs se ele é mesmo o poeta Ferreira Gullar, o homem magro, de pele vincada e óculos de grau, cabeleiras brancas e vastas divididas ao meio como de um índio de western americano, responde: "Às vezes".
Pois anteontem à tarde, por duas horas, durante a décima e última Sabatina Folha deste ano, o poeta, escritor e colunista maranhense José Ribamar Ferreira, 75, estava mais Ferreira Gullar do que nunca.
Irreverente, disposto, "pirado", para usar uma palavra cara à sua fala, Gullar falou de vanguarda ("Ainda estão me devendo"), rememorou sua aproximação e seu rompimento com o concretismo ("Eu não queria saber de movimento nenhum") nos anos 50, sua militância política nos anos 60 e o exílio na década posterior, criticou o governo Lula ("Uma empulhação") e a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura ("Houve centralização") e defendeu o comunismo ("Estava relendo o Manifesto Comunista, que termina com sete reivindicações, e verifiquei que todas foram atendidas").
Mas, para o público que o assistia no Teatro Folha (localizado no shopping Higienópolis, na região central de São Paulo), o poeta, principalmente, traduziu-se ao jogar luz sobre a profissão que escolheu. Ou melhor, sobre a profissão que o escolheu, pois "você nasce poeta", segundo afirmou Gullar: "Como disse Noel Rosa, samba não se aprende na escola".

Apagão
A iluminação teve sentido literário e literal. O literário: Gullar é testemunha viva e personagem atuante do último meio século de poesia no Brasil, em que começou com os modernistas, ajudou a fundar o movimento concretista, a partir de "A Luta Corporal" (1954), com o qual depois romperia para encontrar veios próprios, cujo achado mais importante seria o seminal "Poema Sujo", que faz 30 anos no ano que vem.
O literal: na última meia hora da conversa -da qual participaram os colunistas da Folha e colegas de Gullar (que assina uma coluna dominical nesta Ilustrada) Nelson Ascher, Pasquale Cipro Neto e Manuel da Costa Pinto, o professor de história da cultura da USP Nicolau Sevcenko e o público, por meio de perguntas-, o shopping ficou às escuras.
De acordo com a Eletropaulo, partes da cidade naquele momento ficaram sem luz por problemas na subestação Pirituba.
Acabou a eletricidade no meio do sarau, como a evocar o poema futurista "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1935), em que se lê: "Eia, eletricidade, nervos doentes da Matéria!". Pois foi no breu que Ferreira Gullar terminou de ser sabatinado.
Frasista, exortou que se tentasse "a maravilha, porque a vida não basta". Sincero, revelou pensar sempre a seu favor.
Foi aplaudido pelo público, que ficou até o final, à luz de placas de saída de emergência e da fala de Gullar, que chegou a declamar um poema inédito, "O Duplo", reproduzido aqui: "Foi-se formando/ a meu lado/ um outro/ que é mais Gullar do que eu/ que se apossou do que vi/ do que fiz/ do que era meu/ e pelo país flutua/ livre da morte/ e do morto (...) mas sem o peso/ do corpo/ que sou eu/ culpado e pouco".


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