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FERREIRA GULLAR
Descabida metade das partes
Vivia perturbado pelas contradições da existência, que lhe parecia inexplicável
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DÉCIO FOI um dos primeiros
amigos que tive, ao me transferir para o Rio de Janeiro.
Conhecemo-nos na casa de Mário
Pedrosa, que gostava de seus poemas, os quais, além de bons, eram
bem diferentes dos de outros poetas. Poemas estranhos como ele, seu
autor, mesmo porque não nasceram
da leitura de nenhum outro poeta e,
sim, da conhecida lei de Newton:
"matéria atrai na matéria na razão
direta das massas na razão inversa
do quadrado das distâncias".
Leu-a por acaso, não por ser leitor
de livros científicos. É que, durante
um tempo, trabalhou vendendo coleções de livros, de porta em porta e,
às vezes, abria algum deles e lia algumas páginas; poucas, já que não lhe
agradava muito ler -preferia pensar
e pensar por conta própria. Tinha
necessidade de entender o mundo, e
daí por que a frase de Newton o tocara tão fundo: não era literatura, era
ciência. Melhor dizendo: ele pretendia explicar a realidade e não apenas
falar de sentimentos e fantasias.
Falava pouco e tinha no rosto uma
expressão angustiada, que se apagava num sorriso quando achava graça
em alguma coisa. Mas não se queixava, não se referia às possíveis causas
de sua tristeza. A verdade é que vivia
perturbado pelas contradições da
existência, que lhe parecia inexplicável. Não cria em Deus e demonstrou isso num poema: "Entre as lamentações da vida/existe um canto
no alto/bem no alto/designando o
baixo/bem no baixo/que é alto".
Claro, se não existe o alto nem o
baixo, não existe o céu, que seria a
residência de Deus. Um dia fechou
uma flor numa das mãos e tapou
com a outra: "Tapei a flor na noite e
os dias se esconderam/ descabida
metade das partes/ relâmpago das
cores".
Certa tarde, Décio me levou à sua
casa e então conheci sua mãe, dona
Hortência, cuja figura me surpreendeu. Se ele era calado e tímido, ela,
pelo contrário, era expansiva e falastrona. Quando chegamos, ouvia, numa vitrola antiga, valsas ainda mais
antigas. Era em pleno verão, num
pequeno apartamento daquele bairro decadente, aquelas valsas soavam
como algo quase irreal. Mais inusitada, porém, era a própria figura dela,
vestida como se fosse passear, com o
rosto exageradamente pintado de
ruge, batom nos lábios e brincos nas
orelhas. Décio percebeu minha surpresa e sorriu para mim, pois achava
graça na extravagância da mãe. Contou-me que, quando jovem, era dançarina de teatro rebolado da praça
Tiradentes. Foi lá que o pai de Décio
a conheceu, apaixonaram-se e ela foi
morar com ele em Cavalcanti. Com
a morte do marido, passou a viver
dos aluguéis de pequenas casas que
possuía no subúrbio -uma espécie
de cortiço- e de pastéis que punha
para vender em botecos na vizinhança. Mesmo assim, as despesas a
obrigaram a alugar um dos quartos
do apartamento para um senhor
aposentado, que se revelou um hóspede implicante e rabugento. Implicava com Décio, com a música, com
tudo. Um dia, depois de um bate-boca que provocou a intervenção do
síndico -amanheceu morto, e a polícia levou dona Hortência e Décio
para depor na delegacia, sob suspeita de homicídio. Era o que faltava!
São coisas passadas. Como o drama que ele viveu com as saúvas do
quintal de sua casa, ainda em Cavalcanti. Observou que as saúvas estavam devorando um tomateiro e resolveu intervir a favor da planta, retirando dela, uma por uma, as saúvas
que, persistentes, voltavam e reiniciavam sua faina devastadora. Ele
voltava a retirá-las, até que refletiu:
se impeço as saúvas de comerem,
salvo as plantas, mas mato as saúvas,
o que não é justo, pois elas também
têm direito de viver. Diante de tal dilema insolúvel, largou tudo para lá.
A vida nos afastou. Um belo dia,
ele apareceu com um livro que mandara imprimir: uma proposta para
mudar radicalmente o modo de escrever o português. Queria que eu
lhe conseguisse os endereços da
Unesco, da Universidade de Coimbra e do presidente de Portugal, para
lhes enviar o livro. Ajudei-o como
pude. Algum tempo depois, ele me
apareceu com um telegrama que recebera do presidente português,
agradecendo-lhe o livro.
- Nossa! -exclamei eu. Você deve
estar feliz!
Ele apenas sorriu, depois foi embora. Daí a meia hora, voltava.
- Espero que não se zangue comigo -disse ele. Fiquei esse tempo todo na esquina, sem saber se devia dizer isto a você, mas tenho que dizer:
Não é nossa, não, é minha.
Caro leitor, esta coluna, a partir de
hoje será ilustrada por Rubem Grillo, um dos melhores gravadores
brasileiros, em substituição a Antônio Henrique Amaral que, durante
três anos, emprestou a ela o brilho
de seu talento.
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