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São Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 2003

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TEATRO

"O HERÓI DEVOLVIDO"

Cemitério de Automóveis revitaliza teatro alternativo

Bortolotto oferece espelho para a classe média urbana

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Aqui, ninguém finge que é inglês, nem tenta convencer que pobreza é virtude. Inaugurando com "O Herói Devolvido" o seu novo espaço no Bexiga, o grupo Cemitério de Automóveis revitaliza o que há de mais autêntico no teatro alternativo: um teatro que não liga para acabamento, não se preocupa em estabelecer teorias estéticas e oferece a preço abaixo do custo um espelho para a classe média.
Com esse despudor de produção, cujo recurso mais importante é o despojamento dos atores, Mário Bortolotto pretende ocupar ao máximo o espaço que lhe foi confiado, podendo contar com sua liderança que reúne tribos de atores, autores e diretores, como comprovou no ano passado, em sua maratona no Centro Cultural.
No entanto, essa adaptação de contos de Marcelo Mirisola merece ser destacada do pacote.
Há muito em comum entre Bortolotto e Mirisola: ambos se alimentaram de Bukowski e Henry Miller, com a mesma fé no taco de se impor enquanto colegas desses mitos, e não imitadores. Ambos usam o cinismo como bisturi para abrir os abscessos da classe média baixa urbana, e o palavrão enquanto linguagem, não para chocar o burguês, mas como um dialeto de arlequim.
Mas Bortolotto é um autor multimídia, não diferencia roteiro de literatura e em suas próprias peças não se acanha de variar quantas vezes quiser o mesmo tema, o conflito entre vizinhos solitários, por exemplo. Pensa como um ator no palco. E, sorte da sua geração, pensa como um dramaturgista também.
Mirisola pertence ao livro. Em seus instantâneos do submundo passa um verniz de erudição nos diálogos para fazer o leitor feliz, sem esconder o subterfúgio.
Quando revela que se interessa por "prepúcios e cosmogonias" não cai na ingenuidade da auto-idolatria, já que quem o diz é seu alter-ego Marcelo, seu narrador-personagem que vasculha as perversões da classe média com um olhar ao mesmo tempo ácido e enternecido, em uma espécie de cinismo humanitário, que o aproximaria nem tanto de John Fante, mas -contribuindo no verniz- de Proust.
Assim, quando em um episódio utiliza os serviços sexuais de um jovem deficiente mental, não o mostra nem por denúncia -vício da esquerda- nem por deboche -vício da direita. E essa amoralidade sem truques ideológicos é intensamente adequada em uma época pós-utópica.
A adaptação de Bortolotto sabe bem que o grande personagem de Mirisola é Marcelo e conta com um ator ideal para encarná-lo.
Fábio Espósito o constrói como um personagem de comédia dell'arte, com gestos rígidos e falsete, mas sabe variar ritmo e tom quando se enternece ou se irrita.
Consegue assim alinhavar as cenas nas quais se sucede um grande número atores fazendo pontas, uns com grande segurança, outros beirando o amadorismo, mas a desenvoltura da encenação de Bortolotto faz com que todos se entreguem de peito aberto.
Juntando a agilidade verbal de Mirisola com a vitalidade do Cemitério de Automóveis, "O Herói Devolvido" não é uma obra-prima, o que estragaria a festa, mas um despretensioso exercício de assumir nossa precariedade, sem orgulho nem vergonha.


O Herói Devolvido    
Texto: Marcelo Mirisola
Direção: Mário Bortolotto
Com: Fábio Espósito, Marcos Cesana e Danielle Salibian
Onde: Espaço Cemitério de Automóveis (r. Conselheiro Ramalho, 673, Bela Vista, região central, tel. 3285-2850)
Quando: sex. e sáb, às 21h30; dom., às 20h30. Até 26/1. 18 anos.
Quanto: R$ 5



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