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TEATRO
"O HERÓI DEVOLVIDO"
Cemitério de Automóveis revitaliza teatro alternativo
Bortolotto oferece espelho para a classe média urbana
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Aqui, ninguém finge que é
inglês, nem tenta convencer
que pobreza é virtude. Inaugurando com "O Herói Devolvido"
o seu novo espaço no Bexiga, o
grupo Cemitério de Automóveis
revitaliza o que há de mais autêntico no teatro alternativo: um teatro que não liga para acabamento,
não se preocupa em estabelecer
teorias estéticas e oferece a preço
abaixo do custo um espelho para
a classe média.
Com esse despudor de produção, cujo recurso mais importante
é o despojamento dos atores, Mário Bortolotto pretende ocupar ao
máximo o espaço que lhe foi confiado, podendo contar com sua liderança que reúne tribos de atores, autores e diretores, como
comprovou no ano passado, em
sua maratona no Centro Cultural.
No entanto, essa adaptação de
contos de Marcelo Mirisola merece ser destacada do pacote.
Há muito em comum entre Bortolotto e Mirisola: ambos se alimentaram de Bukowski e Henry
Miller, com a mesma fé no taco de
se impor enquanto colegas desses
mitos, e não imitadores. Ambos
usam o cinismo como bisturi para
abrir os abscessos da classe média
baixa urbana, e o palavrão enquanto linguagem, não para chocar o burguês, mas como um dialeto de arlequim.
Mas Bortolotto é um autor multimídia, não diferencia roteiro de
literatura e em suas próprias peças não se acanha de variar quantas vezes quiser o mesmo tema, o
conflito entre vizinhos solitários,
por exemplo. Pensa como um
ator no palco. E, sorte da sua geração, pensa como um dramaturgista também.
Mirisola pertence ao livro. Em
seus instantâneos do submundo
passa um verniz de erudição nos
diálogos para fazer o leitor feliz,
sem esconder o subterfúgio.
Quando revela que se interessa
por "prepúcios e cosmogonias"
não cai na ingenuidade da auto-idolatria, já que quem o diz é seu
alter-ego Marcelo, seu narrador-personagem que vasculha as perversões da classe média com um
olhar ao mesmo tempo ácido e
enternecido, em uma espécie de
cinismo humanitário, que o aproximaria nem tanto de John Fante,
mas -contribuindo no verniz-
de Proust.
Assim, quando em um episódio
utiliza os serviços sexuais de um
jovem deficiente mental, não o
mostra nem por denúncia -vício
da esquerda- nem por deboche
-vício da direita. E essa amoralidade sem truques ideológicos é
intensamente adequada em uma
época pós-utópica.
A adaptação de Bortolotto sabe
bem que o grande personagem de
Mirisola é Marcelo e conta com
um ator ideal para encarná-lo.
Fábio Espósito o constrói como
um personagem de comédia dell'arte, com gestos rígidos e falsete,
mas sabe variar ritmo e tom
quando se enternece ou se irrita.
Consegue assim alinhavar as cenas nas quais se sucede um grande número atores fazendo pontas,
uns com grande segurança, outros beirando o amadorismo, mas
a desenvoltura da encenação de
Bortolotto faz com que todos se
entreguem de peito aberto.
Juntando a agilidade verbal de
Mirisola com a vitalidade do Cemitério de Automóveis, "O Herói
Devolvido" não é uma obra-prima, o que estragaria a festa, mas
um despretensioso exercício de
assumir nossa precariedade, sem
orgulho nem vergonha.
O Herói Devolvido
Texto: Marcelo Mirisola
Direção: Mário Bortolotto
Com: Fábio Espósito, Marcos Cesana e
Danielle Salibian
Onde: Espaço Cemitério de Automóveis
(r. Conselheiro Ramalho, 673, Bela Vista,
região central, tel. 3285-2850)
Quando: sex. e sáb, às 21h30; dom., às
20h30. Até 26/1. 18 anos.
Quanto: R$ 5
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