São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2004

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RODAPÉ

O que faz com que a literatura seja literatura?

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A editora Martins Fontes acaba de lançar uma nova tradução de "Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários", de René Wellek e Austin Warren. Já existia uma edição portuguesa, disponível em bibliotecas, mas o volume torna mais acessível essa obra que consolida algumas das principais tendências da teoria literária.
Embora escrito a quatro mãos, o livro geralmente é atribuído a Wellek, seja por causa da importância (comparativamente maior) de sua obra individual, seja por que Warren não se dedicou de modo tão intenso ao projeto (devido a uma doença de sua mulher). De todo modo, a obra retraça a trajetória intelectual de Wellek, um tcheco que nasceu em Viena em 1903 e passou a maior parte da vida nos EUA.
Em sua longa existência (ele morreria em 1995), Wellek conviveu de perto com dois movimentos convergentes: o Círculo Lingüístico de Praga (marcado pela presença do lingüista russo Roman Jakobson) e o "new criticism" (normalmente associado ao poeta e ensaísta T.S. Eliot).
Apesar de suas diferenças específicas, ambos se contrapunham ao positivismo e ao subjetivismo do século 19, reivindicando para o discurso literário uma especificidade, um sistema próprio de valores que não poderia ser reduzido a determinismos históricos ou psicológicos.
Metodologicamente, isso se traduzia na desmontagem dos componentes fonológicos, sintáticos e semânticos (no caso dos formalistas) e no "close reading" (a leitura minuciosa dos procedimentos lingüísticos e estilísticos, separando aquilo que um poema ou uma narrativa realizam -em termos estéticos- das motivações subjetivas do autor ou da emoção que o texto provoca no leitor).
Hoje, a idéia de que a literatura é uma esfera autônoma está consagrada. Os debates contemporâneos lidam com outro tipo de questão: se o que prevalece na construção literária é a ficcionalidade, o trabalho sobre a forma, a representação da realidade etc. Ou seja, discute-se qual seria a essência da literatura, seu núcleo duro -como se sua substância fosse algo dado de antemão, pura existência compreendida antes de ser pensada.
E, no entanto, a questão mais difícil de responder é justamente a mais elementar: o que faz com que a literatura seja literatura?
Wellek e Warren não se limitam a esse problema. Há em "Teoria da Literatura" uma discussão dos gêneros literários, considerações sobre estilística, ritmo, métrica, definições de termos como imagem, metáfora, símbolo -enfim, um arsenal teórico que está no horizonte de todo crítico (exemplo disso é a distinção entre personagens "planas" e "redondas", formulada originalmente por E.M. Forster e retomada por Antonio Candido em ensaio do livro "A Personagem de Ficção").
Mas os dois momentos cruciais da obra são os capítulos "A Natureza da Literatura" e "O Modo de Existência de uma Obra de Arte Literária". Escritos por Wellek, esses ensaios procuram definir o estatuto da literatura como "artefato" constituído a partir de um desvio em relação aos códigos da ciência e da fala do cotidiano.
"A linguagem científica é puramente "denotativa'; ela almeja uma correspondência de um para um entre signo e referencial", ao passo que a palavra literária é conotativa, repleta de "categorias arbitrárias ou irracionais, (...) acidentes históricos, lembranças, associações", diz o crítico.
Essa expressividade, porém, está presente também na linguagem prosaica, que não se reduz a funções comunicativas (como provam os solilóquios infantis ou a tagarelice social). Como distinguir, portanto, o "dialeto" da literatura e a linguagem ordinária? "É quantitativamente, antes de tudo, que a linguagem literária deve ser diferenciada dos vários usos do cotidiano. (...) A arte impõe certo tipo de estrutura que tira o enunciado da obra do mundo da realidade."
Com isso, Wellek sintetiza duas noções capitais da crítica contemporânea: de um lado, a idéia de que, na literatura, "a função estética é dominante" (fórmula que remete ao Jakobson de "Lingüística e Poética"); de outro, a idéia de que gêneros literários distintos têm em comum "a referência a um mundo de ficção, de imaginação" (tema que teria desdobramentos em autores tão díspares quanto Sartre ou Luiz Costa Lima).
Ao mesmo, Wellek evita qualquer esquematismo, mostrando que há casos fronteiriços (como os ensaios de Montaigne ou Emerson, em que a invenção convive com a reflexão filosófica) e mostrando como as mediações literárias são permeáveis a contextos históricos e a outras manifestações discursivas.
Tais exemplos representam uma ínfima parte desse livro escrito com clareza invejável e boa dose de humor. Uma obra que considera a crítica uma disciplina subordinada à criação, que não tem aquela ambição transformadora dos ensaios de Barthes ou Blanchot, mas se apresenta como exercício sereno de leitura e humanismo.


Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários
    
Autores: René Wellek e Austin Warren
Tradução: Luis Carlos Borges
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 47,50 (434 págs.)



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