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RODAPÉ
O que faz com que a literatura seja literatura?
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A editora Martins Fontes
acaba de lançar uma nova
tradução de "Teoria da Literatura
e Metodologia dos Estudos Literários", de René Wellek e Austin
Warren. Já existia uma edição
portuguesa, disponível em bibliotecas, mas o volume torna mais
acessível essa obra que consolida
algumas das principais tendências da teoria literária.
Embora escrito a quatro mãos,
o livro geralmente é atribuído a
Wellek, seja por causa da importância (comparativamente
maior) de sua obra individual, seja por que Warren não se dedicou
de modo tão intenso ao projeto
(devido a uma doença de sua mulher). De todo modo, a obra retraça a trajetória intelectual de Wellek, um tcheco que nasceu em
Viena em 1903 e passou a maior
parte da vida nos EUA.
Em sua longa existência (ele
morreria em 1995), Wellek conviveu de perto com dois movimentos convergentes: o Círculo Lingüístico de Praga (marcado pela
presença do lingüista russo Roman Jakobson) e o "new criticism" (normalmente associado
ao poeta e ensaísta T.S. Eliot).
Apesar de suas diferenças específicas, ambos se contrapunham
ao positivismo e ao subjetivismo
do século 19, reivindicando para o
discurso literário uma especificidade, um sistema próprio de valores que não poderia ser reduzido a
determinismos históricos ou psicológicos.
Metodologicamente, isso se traduzia na desmontagem dos componentes fonológicos, sintáticos e
semânticos (no caso dos formalistas) e no "close reading" (a leitura
minuciosa dos procedimentos
lingüísticos e estilísticos, separando aquilo que um poema ou uma
narrativa realizam -em termos
estéticos- das motivações subjetivas do autor ou da emoção que o
texto provoca no leitor).
Hoje, a idéia de que a literatura é
uma esfera autônoma está consagrada. Os debates contemporâneos lidam com outro tipo de
questão: se o que prevalece na
construção literária é a ficcionalidade, o trabalho sobre a forma, a
representação da realidade etc.
Ou seja, discute-se qual seria a essência da literatura, seu núcleo
duro -como se sua substância
fosse algo dado de antemão, pura
existência compreendida antes de
ser pensada.
E, no entanto, a questão mais difícil de responder é justamente a
mais elementar: o que faz com
que a literatura seja literatura?
Wellek e Warren não se limitam
a esse problema. Há em "Teoria
da Literatura" uma discussão dos
gêneros literários, considerações
sobre estilística, ritmo, métrica,
definições de termos como imagem, metáfora, símbolo -enfim,
um arsenal teórico que está no
horizonte de todo crítico (exemplo disso é a distinção entre personagens "planas" e "redondas",
formulada originalmente por
E.M. Forster e retomada por Antonio Candido em ensaio do livro
"A Personagem de Ficção").
Mas os dois momentos cruciais
da obra são os capítulos "A Natureza da Literatura" e "O Modo de
Existência de uma Obra de Arte
Literária". Escritos por Wellek,
esses ensaios procuram definir o
estatuto da literatura como "artefato" constituído a partir de um
desvio em relação aos códigos da
ciência e da fala do cotidiano.
"A linguagem científica é puramente "denotativa'; ela almeja
uma correspondência de um para
um entre signo e referencial", ao
passo que a palavra literária é conotativa, repleta de "categorias
arbitrárias ou irracionais, (...) acidentes históricos, lembranças, associações", diz o crítico.
Essa expressividade, porém, está presente também na linguagem
prosaica, que não se reduz a funções comunicativas (como provam os solilóquios infantis ou a
tagarelice social). Como distinguir, portanto, o "dialeto" da literatura e a linguagem ordinária? "É
quantitativamente, antes de tudo,
que a linguagem literária deve ser
diferenciada dos vários usos do
cotidiano. (...) A arte impõe certo
tipo de estrutura que tira o enunciado da obra do mundo da realidade."
Com isso, Wellek sintetiza duas
noções capitais da crítica contemporânea: de um lado, a idéia de
que, na literatura, "a função estética é dominante" (fórmula que
remete ao Jakobson de "Lingüística e Poética"); de outro, a idéia de
que gêneros literários distintos
têm em comum "a referência a
um mundo de ficção, de imaginação" (tema que teria desdobramentos em autores tão díspares
quanto Sartre ou Luiz Costa Lima).
Ao mesmo, Wellek evita qualquer esquematismo, mostrando
que há casos fronteiriços (como
os ensaios de Montaigne ou
Emerson, em que a invenção convive com a reflexão filosófica) e
mostrando como as mediações literárias são permeáveis a contextos históricos e a outras manifestações discursivas.
Tais exemplos representam
uma ínfima parte desse livro escrito com clareza invejável e boa
dose de humor. Uma obra que
considera a crítica uma disciplina
subordinada à criação, que não
tem aquela ambição transformadora dos ensaios de Barthes ou
Blanchot, mas se apresenta como
exercício sereno de leitura e humanismo.
Teoria da Literatura e
Metodologia dos Estudos
Literários
Autores: René Wellek e Austin Warren
Tradução: Luis Carlos Borges
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 47,50 (434 págs.)
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