São Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

As viúvas da aldeia

A idéia, vinda da Inglaterra, era apontar os maiores de Portugal. E há possibilidade séria de Salazar levar a taça

QUEM SERÃO os grandes brasileiros da história? Melhor não responder. Há perguntas que devem ficar sem resposta.
Os portugueses aprenderam essa lição em concurso televisivo que rebentou em polêmica. A idéia, simpática e importada da Inglaterra, era eleger os maiores do país. Concurso em duas fases. Na primeira, elegiam-se os cem maiores. Na segunda, os dez maiores. Atualmente, os portugueses votam no maior de todos. E existe a séria possibilidade de Salazar levar a taça. Como explicar isso? Como explicar que Churchill vença na Inglaterra e Salazar conquiste Portugal 30 anos depois da Revolução dos Cravos?
Calma, gente: falamos de uma brincadeira televisiva, e a lista dos dez primeiros não é uma vergonha completa. Não temos uma princesa Diana, como os ingleses. Temos Camões e Pessoa, por exemplo, embora só Camões e Pessoa: a prova definitiva de que a "literatura portuguesa" é sobretudo uma questão de verso, não de prosa. Isso é válido para o presente: para cada Saramago, há dez poetas incomparavelmente melhores. Saramago não está na lista.
Os descobrimentos também não foram ignorados. Henrique, o Navegador, surge em posição de destaque. Inevitável. Vasco da Gama, que descobriu o caminho marítimo para a Índia e destronou a rota mediterrânica das especiarias, também. E Pedro Álvares Cabral? Ausente. Curioso: o que diria Freud da forma maciça como os portugueses removeram a descoberta do Brasil do seu horizonte mental? Pedro dos tamancos ficou em 49º lugar. O Brasil, nitidamente, interessa pouco.
Na política, dois nomes: d. João 2º, um modernizador com olhos postos na expansão marítima; e o marquês de Pombal, que ganhou certo consenso entre os lusos. O marquês, que, pelos padrões modernos, seria um tirano com gosto pela violência de Estado, ficou para a posteridade como herói do terremoto de 1755. A ignorância é democrática.
Mas um nome espanta pela qualidade: Aristides de Sousa Mendes. Oscar Schindler, o nazista arrependido, salvou mil judeus da morte certa? Aristides, cônsul em Bordéus, salvou 30 mil, concedendo visto de passagem para os perseguidos de Hitler e contrariando Salazar.
E Salazar? Salazar, que condenou Aristides à miséria, surge na lista disposto a ganhá-la. Entender o fato implica saber que a televisão lusa tudo fez para excluí-lo da seleção inicial. A intenção censória fez ricochete e despertou as brigadas saudosistas, que correram em salvamento do velho e esquecido Antônio.
Não foram as únicas. Se Salazar está na lista, o histórico líder dos comunistas, Álvaro Cunhal, também. Duas faces, a mesma moeda: a moeda do autoritarismo reacionário (Salazar) e do stalinismo revolucionário (Cunhal). Trinta anos depois do 25 de Abril, uma brincadeira televisiva mostrou o que eu já suspeitava: a maioria dos meus compatriotas sente saudades de dois ditadores.
Eu, por mim, votarei em d. Afonso Henriques (1109-1187). Sim, ele está na lista. E nosso primeiro rei não tem culpa alguma do estado democrático em que se encontram as viúvas da aldeia.


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