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MARCELO COELHO
Elegia para um cometa injustiçado
A morte, hoje em dia, tem outros espetáculos à disposição e dispensa
ocasionais cometas
QUANDO A angústia por dentro
é grande demais, nada nos
interessa além de nós mesmos. Talvez por isso o planeta Terra,
tomado de tantas catástrofes, tenha
dado pouca importância ao esplêndido cometa que andou por aqui.
Verdade que o nome não ajuda:
McNaught. Isso não é nome de cometa que se preze. No máximo, serve para mordomo ou milionário em
romance de Agatha Christie.
Seja como for, é o cometa mais injustiçado dos últimos cem mil anos.
Ninguém deu suficiente atenção ao
seu raro brilho - o cientista que o
descobriu afirma, solitário, que é de
primeira ordem.
Saíram umas fotos no jornal,
umas poucas chamadas na internet.
Mas o cometa terminou disputando
espaço com um urso aniversariante,
que ao completar 41 anos ganhou
uma torta de presente; ou com o bonito vídeo do veadinho que, no meio
de um lago congelado, não tinha como voltar para casa até que um helicóptero providenciou bastante ventania para escorregá-lo de novo ao
bosque.
E há também as cotidianas catástrofes que comprovam, a olho nu, o
fenômeno do aquecimento global.
Não nego que o tema seja de causar
calafrios, mas devo confessar que
muitas vezes acho fascinantes os desastres que aparecem na TV.
Fico maravilhado quando surge
no noticiário uma grande ressaca
atingindo o litoral do Maine ou de
Connecticut. Invariavelmente, há
uma daquelas bem-cuidadas casas
de madeira, de cores claras, num
suave contraste com o cinza e o
branco do mar gelado. Vem uma onda e engole inteiro o bangalô, que se
desfaz como se tivesse sido construído com palitos de sorvete.
Casos assim geralmente não têm
vítimas, prestando-se a uma contemplação estética relativamente
sem culpa. Mais preocupantes e sinistras são as cenas de grandes geleiras que desabam, da terra seca que
aflora onde só havia antes uma cobertura glacial de milhões de anos:
ainda assim, temos tanta fome de
imagens quanto de carbono, e esses
espetáculos de desequilíbrio, derramamento, contorção e fúria são
sempre bonitos de se ver.
Pobre McNaught! Apresentou-se
como um mágico de circo decadente, perito em seu ofício, certo de que
a platéia ficaria boquiaberta com
seus velhos truques: puxou da manga uma longa echarpe de seda prateada, agitou-a no ar, desfiou-a em
fantásticos fogos de artifício. Depois, recolheu-a suavemente dentro
da sua cartola negra, bem puída (em
quantos picadeiros não terá repetido o seu prodígio?), e esperou pelos
aplausos. Vieram, mas esparsos, desatentos, de um ou outro espectador
mais idoso no fundo da platéia.
Nos idos de 1970, vivi a enorme
expectativa causada pela iminente
aparição de um cometa chamado
Kohoutek. Seria, segundo os especialistas, muito mais brilhante que o
Halley; seu favoritismo na corrida
estelar era comparável ao de todas
as seleções brasileiras que daqui saíram campeãs... e que voltaram, como a última, desagregadas em poeira de brilho microscópico.
O Kohoutek reduziu-se, de fato, a
um pontinho diluído nas péssimas
fotografias em preto e branco dos
jornais da época. Quando veio o Halley, em 1986, eu já era bem mais cético.
Multidões se reuniram para vê-lo; conhecidos meus embarcaram
em seus Chevettes, em suas Variants, em suas Brasílias, para encontrá-lo em Mairiporã ou nos altos
do Itatiaia.
Desconfio que as visões daquele
corpo celeste, ao qual se associaram
especulações místicas bem ao espírito da época, terminaram ocultas
por espessas nuvens de maconha. O
cometa Halley já não era bem um
cometa naquele tempo: tornou-se,
antes de tudo, logotipo, mito urbano, pretexto, retalho de ideologia
"new age", fiapo de factóide.
Bem diferente do que tinha sido
em 1910, a crer nos poemas que Carlos Drummond de Andrade lhe dedicou. "Olho o cometa", escreve o
poeta em "Boitempo", "com deslumbrado horror de sua cauda/ que
vai bater na Terra e o mundo explode./ Não estou preparado. Quem está,/ para morrer? O céu é dia,/ um
dia mais bonito do que o dia./ (...) O
cometa/ chicoteia de luz a minha vida/ e tudo que não fiz brilha em diadema/ e tudo é lindo./ Ninguém
chora/ nem grita./ A luz total/ de
nossas mortes faz um espetáculo."
Bem mais inofensivo, esse
McNaught. Não tinha mais como assustar ninguém. A morte, hoje em
dia, tem outros espetáculos à sua
disposição e dispensa ocasionais cometas. Adeus, bom e velho
McNaught. Mais sorte da próxima
vez.
coelhofsp@uol.com.br
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