São Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

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MARCELO COELHO

Elegia para um cometa injustiçado

A morte, hoje em dia, tem outros espetáculos à disposição e dispensa ocasionais cometas

QUANDO A angústia por dentro é grande demais, nada nos interessa além de nós mesmos. Talvez por isso o planeta Terra, tomado de tantas catástrofes, tenha dado pouca importância ao esplêndido cometa que andou por aqui.
Verdade que o nome não ajuda: McNaught. Isso não é nome de cometa que se preze. No máximo, serve para mordomo ou milionário em romance de Agatha Christie.
Seja como for, é o cometa mais injustiçado dos últimos cem mil anos.
Ninguém deu suficiente atenção ao seu raro brilho - o cientista que o descobriu afirma, solitário, que é de primeira ordem.
Saíram umas fotos no jornal, umas poucas chamadas na internet.
Mas o cometa terminou disputando espaço com um urso aniversariante, que ao completar 41 anos ganhou uma torta de presente; ou com o bonito vídeo do veadinho que, no meio de um lago congelado, não tinha como voltar para casa até que um helicóptero providenciou bastante ventania para escorregá-lo de novo ao bosque.
E há também as cotidianas catástrofes que comprovam, a olho nu, o fenômeno do aquecimento global.
Não nego que o tema seja de causar calafrios, mas devo confessar que muitas vezes acho fascinantes os desastres que aparecem na TV.
Fico maravilhado quando surge no noticiário uma grande ressaca atingindo o litoral do Maine ou de Connecticut. Invariavelmente, há uma daquelas bem-cuidadas casas de madeira, de cores claras, num suave contraste com o cinza e o branco do mar gelado. Vem uma onda e engole inteiro o bangalô, que se desfaz como se tivesse sido construído com palitos de sorvete.
Casos assim geralmente não têm vítimas, prestando-se a uma contemplação estética relativamente sem culpa. Mais preocupantes e sinistras são as cenas de grandes geleiras que desabam, da terra seca que aflora onde só havia antes uma cobertura glacial de milhões de anos: ainda assim, temos tanta fome de imagens quanto de carbono, e esses espetáculos de desequilíbrio, derramamento, contorção e fúria são sempre bonitos de se ver.
Pobre McNaught! Apresentou-se como um mágico de circo decadente, perito em seu ofício, certo de que a platéia ficaria boquiaberta com seus velhos truques: puxou da manga uma longa echarpe de seda prateada, agitou-a no ar, desfiou-a em fantásticos fogos de artifício. Depois, recolheu-a suavemente dentro da sua cartola negra, bem puída (em quantos picadeiros não terá repetido o seu prodígio?), e esperou pelos aplausos. Vieram, mas esparsos, desatentos, de um ou outro espectador mais idoso no fundo da platéia.
Nos idos de 1970, vivi a enorme expectativa causada pela iminente aparição de um cometa chamado Kohoutek. Seria, segundo os especialistas, muito mais brilhante que o Halley; seu favoritismo na corrida estelar era comparável ao de todas as seleções brasileiras que daqui saíram campeãs... e que voltaram, como a última, desagregadas em poeira de brilho microscópico.
O Kohoutek reduziu-se, de fato, a um pontinho diluído nas péssimas fotografias em preto e branco dos jornais da época. Quando veio o Halley, em 1986, eu já era bem mais cético.
Multidões se reuniram para vê-lo; conhecidos meus embarcaram em seus Chevettes, em suas Variants, em suas Brasílias, para encontrá-lo em Mairiporã ou nos altos do Itatiaia.
Desconfio que as visões daquele corpo celeste, ao qual se associaram especulações místicas bem ao espírito da época, terminaram ocultas por espessas nuvens de maconha. O cometa Halley já não era bem um cometa naquele tempo: tornou-se, antes de tudo, logotipo, mito urbano, pretexto, retalho de ideologia "new age", fiapo de factóide.
Bem diferente do que tinha sido em 1910, a crer nos poemas que Carlos Drummond de Andrade lhe dedicou. "Olho o cometa", escreve o poeta em "Boitempo", "com deslumbrado horror de sua cauda/ que vai bater na Terra e o mundo explode./ Não estou preparado. Quem está,/ para morrer? O céu é dia,/ um dia mais bonito do que o dia./ (...) O cometa/ chicoteia de luz a minha vida/ e tudo que não fiz brilha em diadema/ e tudo é lindo./ Ninguém chora/ nem grita./ A luz total/ de nossas mortes faz um espetáculo."
Bem mais inofensivo, esse McNaught. Não tinha mais como assustar ninguém. A morte, hoje em dia, tem outros espetáculos à sua disposição e dispensa ocasionais cometas. Adeus, bom e velho McNaught. Mais sorte da próxima vez.


coelhofsp@uol.com.br

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