São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Espectros em rebelião


"O Delfim", romance experimental do português José Cardoso Pires, ganha edição comemorativa


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A EDIÇÃO comemorativa dos 40 anos de "O Delfim", de José Cardoso Pires, traz como apêndice reflexões sobre o regime ditatorial de Salazar e sobre as múltiplas formas de censura que obrigaram os escritores portugueses a adotar um "estilo clandestino". Tais comentários fazem parte de "Visita à Oficina" (espécie de pós-escrito a "O Delfim'" apresentado no King's College de Londres em 1971) e colocam a pergunta: até que ponto a escrita enviesada, hermética, de "O Delfim" seria uma forma de escapar à vigilância da Pide (o órgão de repressão salazarista)?
Desde seu surgimento, o romance de Cardoso Pires vem sendo associado ao "nouveau roman" francês, à busca de uma linguagem consciente de seu caráter de artifício, refratária ao modelo realista -ou, no caso português, do neorrealismo de Alves Redol, Manuel da Fonseca e Carlos de Oliveira. Em "O Delfim", o narrador (identificado apenas como "o senhor escritor") retorna à imaginária região de Gafeira, onde conhecera um ano antes Tomás Manuel, último descendente -"delfim", na terminologia dinástica- da família Palma Bravo e proprietário de terras onde está a lagoa da qual depende a população local.
Durante a visita para uma temporada de caça, fica sabendo que este desaparecera após assassinatos e indícios de adultério envolvendo a mulher e um criado. Insinua-se assim uma trama policial que logo se dilui: o escritor não reconstitui uma história, apenas registra as falas das personagens que vai encontrando pelas ruas.
Ele projeta um romance, mas se recusa a reproduzir o modelo de uma prosa que monumentaliza os fatos. O seu contraexemplo é a "Monografia do Termo da Gafeira", do abade Agostinho Saraiva -um panegírico da dinastia Palma Bravo que aparece na forma de irônicas citações.
"Se pretender juntar aos meus apontamentos a menor ideia, a menor palavra, serei, como o abade da "Monografia", narrador de tempos mortos. Falarei obrigatoriamente de ruínas, misturarei ditos e provérbios, pondo-os na boca do filho quando pertenciam ao pai ou ao tetravô, numa baralhada de espectros em rebelião." Estamos no âmbito da ficção metalinguística típica das décadas de 60 e 70: a tentativa de romance é o romance que lemos.
A operação estilística, todavia, não é despida de alcance crítico. Ao transformar os ausentes em protagonistas de um enredo sobre a morte da linguagem mimética, "O Delfim" encena textualmente os hábitos predatórios da classe dominante ("Os cemitérios são de todos, a lagoa é só minha", segundo o mote de Tomás Manuel). E é da desaparição dessa linguagem, com seus espectros, que pode surgir uma nova forma de experiência, de imaginação clandestina.


O DELFIM
Autor: José Cardoso Pires
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 39 (320 págs.)
Avaliação: ótimo



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