São Paulo, sábado, 24 de fevereiro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O mar é o limite

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Desde a "Odisséia", o mar está associado à literatura como fundamento. Ele não é apenas fonte de belas histórias, mas metáfora poderosa da própria aventura literária, cenário radical para a representação da condição humana.
Três modos tradicionais de representar o mar pela literatura estão presentes em "A História Mais Bela do Mundo", que reúne três contos assinados por Jack London (1876-1916), Stephen Crane (1871-1900) e Rudyard Kipling (1865-1936).
Em "O Pagão", de London, o mar é o limite onde, diante do perigo, da iminência da morte e da insignificância do homem, se revela o lado mais comovente e trágico da aventura humana, fazendo emergir sentimentos de heroísmo e amizade em estado puro. É a tradição em que se reconhecem Joseph Conrad e Hermann Melville.
Em "O Bote", de Crane, a adversidade do mar é motivo para o relato da experiência pessoal. Em janeiro de 1897, o autor de fato embarcou como correspondente de guerra num vapor com destino a Cuba, onde os Estados Unidos se aliaram aos rebeldes contra a Espanha. O navio naufragou na travessia entre a Flórida e a ilha. Crane ficou à deriva, num bote, com mais três tripulantes. A história, embora narrada em terceira pessoa, conta o que o escritor viveu nesses dias de inferno.
Por fim, no conto borgiano que dá título ao volume, Kipling faz do mar a parábola do inominável. Ele serve de cenário de fundo para "a história mais bela do mundo", mas que, por isso, jamais poderá ser escrita.
Os três modos de narrar o mar (como representação da condição humana, relato da experiência ou parábola do inominável), embora costumem ser indissociáveis, em especial nos romances mais bem-sucedidos de Conrad e Melville, aparecem separadamente, de maneira distinta e preponderante, em cada um desses contos, nem por isso menos extraordinários.
É curiosa, por exemplo, a radicalidade do sentimento de amizade que o mar produz na literatura. E isso a ponto de encobrir, com a ambiguidade da linguagem ("Ele era um dos nossos", no prefácio de "Lord Jim") ou da imagem do duplo (como no assombroso "O Companheiro Secreto", também de Conrad), relações que têm quase tudo de um amor homossexual. É dessa amizade que trata "O Pagão", de Jack London.
"Foi num furacão que o encontrei (...), só quando a escuna se tinha feito em pedaços sob os nossos pés é que reparei nele", começa o narrador, a quem o "pagão" do título, um selvagem do Pacífico sul, depois de salvar-lhe a vida, passará a se dedicar com exclusividade.
Únicos sobreviventes do naufrágio, os dois fazem um pacto secreto: "Trocamos nomes. Para você eu sou Otoo. Para mim você é Charley. E entre você e eu, para todo o sempre, você vai ser Charley, e eu vou ser Otoo". No mar, a permanente ameaça da dissolução do sujeito pela fúria da natureza faz que um e o outro passem a ser o mesmo.
Em "O Bote", o relato do náufrago reduz essa ameaça e a consequente luta pela sobrevivência ao horror da repetição. Não há descanso: os quatro sobreviventes remam sem parar e sem sair do lugar, nem que seja apenas para evitar a morte e manter o bote na direção em que as ondas não possam virá-lo.
Finalmente, o conto de Kipling usa o mar como pretexto para uma reflexão sobre o próprio enigma da imaginação. Um bancário com ambições literárias não consegue pôr no papel a genialidade da história que tem na cabeça: quer contar a experiência de um escravo grego remando nas galés. Conforme vai ouvindo a história do bancário, o narrador por sua vez começa a suspeitar, pela surpreendente riqueza de detalhes, que tudo aquilo não seja fruto da imaginação, mas antes de uma espécie de memória.
E é essa conclusão esotérica e paradoxal, incompatível com as idéias e os princípios da cultura em que vive, que torna a história impossível de ser narrada: "Percebendo que acabara de descobrir as bases de funcionamento dessa memória parcial, chamada erroneamente de imaginação, senti-me no direito de rir. (...) Uma vez escrita, não seria nada mais do que uma peça falsificada".



A História Mais Bela do Mundo
The Heathen, The Open Boat, The Finest Story in the World     
Autores: Jack London, Stephen Crane e Rudyard Kipling
Tradutor: Pedro Süssekind
Editora: Dantes
Quanto: R$ 13 (200 págs.)




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