|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
O mar é o limite
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Desde a "Odisséia", o mar
está associado à literatura
como fundamento. Ele não é
apenas fonte de belas histórias,
mas metáfora poderosa da própria aventura literária, cenário
radical para a representação da
condição humana.
Três modos tradicionais de representar o mar pela literatura
estão presentes em "A História
Mais Bela do Mundo", que reúne três contos assinados por
Jack London (1876-1916), Stephen Crane (1871-1900) e Rudyard Kipling (1865-1936).
Em "O Pagão", de London, o
mar é o limite onde, diante do
perigo, da iminência da morte e
da insignificância do homem, se
revela o lado mais comovente e
trágico da aventura humana, fazendo emergir sentimentos de
heroísmo e amizade em estado
puro. É a tradição em que se reconhecem Joseph Conrad e
Hermann Melville.
Em "O Bote", de Crane, a adversidade do mar é motivo para
o relato da experiência pessoal.
Em janeiro de 1897, o autor de
fato embarcou como correspondente de guerra num vapor com
destino a Cuba, onde os Estados
Unidos se aliaram aos rebeldes
contra a Espanha. O navio naufragou na travessia entre a Flórida e a ilha. Crane ficou à deriva,
num bote, com mais três tripulantes. A história, embora narrada em terceira pessoa, conta o
que o escritor viveu nesses dias
de inferno.
Por fim, no conto borgiano
que dá título ao volume, Kipling
faz do mar a parábola do inominável. Ele serve de cenário de
fundo para "a história mais bela
do mundo", mas que, por isso,
jamais poderá ser escrita.
Os três modos de narrar o mar
(como representação da condição humana, relato da experiência ou parábola do inominável),
embora costumem ser indissociáveis, em especial nos romances mais bem-sucedidos de
Conrad e Melville, aparecem separadamente, de maneira distinta e preponderante, em cada
um desses contos, nem por isso
menos extraordinários.
É curiosa, por exemplo, a radicalidade do sentimento de amizade que o mar produz na literatura. E isso a ponto de encobrir,
com a ambiguidade da linguagem ("Ele era um dos nossos",
no prefácio de "Lord Jim") ou
da imagem do duplo (como no
assombroso "O Companheiro
Secreto", também de Conrad),
relações que têm quase tudo de
um amor homossexual. É dessa
amizade que trata "O Pagão", de
Jack London.
"Foi num furacão que o encontrei (...), só quando a escuna
se tinha feito em pedaços sob os
nossos pés é que reparei nele",
começa o narrador, a quem o
"pagão" do título, um selvagem
do Pacífico sul, depois de salvar-lhe a vida, passará a se dedicar
com exclusividade.
Únicos sobreviventes do naufrágio, os dois fazem um pacto
secreto: "Trocamos nomes. Para
você eu sou Otoo. Para mim você é Charley. E entre você e eu,
para todo o sempre, você vai ser
Charley, e eu vou ser Otoo". No
mar, a permanente ameaça da
dissolução do sujeito pela fúria
da natureza faz que um e o outro
passem a ser o mesmo.
Em "O Bote", o relato do náufrago reduz essa ameaça e a consequente luta pela sobrevivência
ao horror da repetição. Não há
descanso: os quatro sobreviventes remam sem parar e sem sair
do lugar, nem que seja apenas
para evitar a morte e manter o
bote na direção em que as ondas
não possam virá-lo.
Finalmente, o conto de Kipling usa o mar como pretexto
para uma reflexão sobre o próprio enigma da imaginação. Um
bancário com ambições literárias não consegue pôr no papel a
genialidade da história que tem
na cabeça: quer contar a experiência de um escravo grego remando nas galés. Conforme vai
ouvindo a história do bancário,
o narrador por sua vez começa a
suspeitar, pela surpreendente riqueza de detalhes, que tudo
aquilo não seja fruto da imaginação, mas antes de uma espécie
de memória.
E é essa conclusão esotérica e
paradoxal, incompatível com as
idéias e os princípios da cultura
em que vive, que torna a história
impossível de ser narrada: "Percebendo que acabara de descobrir as bases de funcionamento
dessa memória parcial, chamada erroneamente de imaginação, senti-me no direito de rir.
(...) Uma vez escrita, não seria
nada mais do que uma peça falsificada".
A História Mais Bela do Mundo
The Heathen, The Open Boat, The
Finest Story in the World
Autores: Jack London, Stephen Crane
e Rudyard Kipling
Tradutor: Pedro Süssekind
Editora: Dantes
Quanto: R$ 13 (200 págs.)
Texto Anterior: "Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas" : Historiador faz anatomia do purgatório colonial Próximo Texto: Panorâmica - Curso: Escritor ensina a construção do romance Índice
|