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DRAUZIO VARELLA
Ratos humanos
Mulheres e homens têm
apenas 30 mil genes! A divulgação desse dado pelo Projeto
Genoma foi um balde de água
fria no orgulho humano: imaginávamos que fossem pelo menos
100 mil.
Se as moscas têm 13 mil genes,
qualquer verme, 20 mil, um abacateiro, 25 mil, e os camundongos
que caçamos nas ratoeiras 30 mil,
para nós, 100 mil parecia estimativa razoável. Afinal, não foi culpa nossa havermos sido criados à
imagem e semelhança de Deus.
A bem da verdade, já sabíamos
que mais de 98% de nossos genes
são idênticos aos dos chimpanzés.
Mas chimpanzés são animais políticos que formam comunidades
com culturas próprias, utilizam
instrumentos rudimentares e matam seus semelhantes premeditadamente. São, por assim dizer, seres mais humanos.
Admitir, no entanto, que nosso
genoma é formado pelo mesmo
número de genes dos ratos e que
somente 300 genes são responsáveis pelas diferenças entre nós e
eles constitui humilhação inaceitável.
A visão antropocêntrica, segundo a qual a vida na Terra teria
evoluído dos seres unicelulares
para indivíduos cada vez mais
complexos até chegar ao homem,
é um mau entendimento das leis
da natureza. No "ranking" evolucionário, não existe primeira posição. A prova é que as bactérias
foram os primeiros habitantes do
planeta e não só ainda estão por
aí como representam mais da metade da biomassa terrestre, isto é,
se somarmos o peso de cada uma,
obteremos mais da metade da
massa de todos os demais seres vivos somados, incluindo árvores e
elefantes.
O Homo sapiens é simplesmente uma entre milhões de espécies.
Nascemos há 5 milhões de anos,
um segundo evolucionário comparado aos 4 bilhões de anos das
bactérias. Não fizemos nenhuma
falta à vida na Terra durante praticamente toda a existência dela
e, se um dia formos extintos, nenhuma formiga, cigarra ou besouro chorará a nossa ausência. A
evolução continuará seu caminho inexorável de competição e
seleção natural, como ensinou
Charles Darwin.
Na verdade, os números do Projeto Genoma são lógicos. Os seres
vivos mantêm a quase totalidade
de seus genes ocupados na execução das tarefas do dia-a-dia: respiração, circulação, movimentação, digestão, excreção e produção de energia, entre outras.
Muitos desses genes são tão essenciais ao trabalho doméstico
que a evolução os preservou praticamente intactos de um ser vivo
para outro. Vejam o caso do gene
responsável pela ubiquitina.
A ubiquitina é uma proteína
envolvida na maquinário celular,
encarregada de cortar outras proteínas. Dentro da célula, essa é
uma função importantíssima,
porque as proteínas que ficaram
velhas ou saíram defeituosas precisam ser destruídas para não
atrapalhar o funcionamento celular. Outras têm que ser cortadas
para permitir que ocorram determinadas reações inibidas por sua
presença, da mesma forma que a
tampa de um tanque precisa ser
retirada para que escoe a água
nele contida.
Se compararmos a ubiquitina
de um fungo com a da mosca da
banana, com a de um verme, com
a de um sapo ou com a do homem, veremos que as moléculas
são praticamente iguais (daí o
nome para sugerir ubiquidade).
A semelhança é tanta que os biólogos interessados no mecanismo
de ação da ubiquitina não são
obrigados a estudá-la no homem:
podem fazê-lo num fungo e transpor os resultados para a fisiologia
humana.
É provável que o ancestral comum aos fungos e aos homens,
que viveu há 600 milhões de anos,
tenha desenvolvido um método
tão eficiente de cortar proteínas
que se manteve intacto durante o
processo evolutivo. Os descendentes desse ancestral incapazes de
produzir ubiquitina não tiveram
chance na competição e desapareceram.
Como o gene da ubiquitina,
grande número de outros são
compartilhados por todos os seres
vivos, com diferenças mínimas.
Estão geralmente ligados às funções essenciais à manutenção da
vida na célula. Representam soluções tão econômicas para a execução das tarefas diárias que a
evolução não conseguiu imaginar
outras melhores. É como o caso
da existência de dois olhos na cabeça, por exemplo, estratégia
adotada por todos os animais dotados de visão.
Entender a razão pela qual temos 30 mil genes como os ratos é
fácil: eles são mamíferos como nós
e apresentam fisiologia tão semelhante à nossa que podem ser utilizados em experiências para entender o organismo humano. O
que intriga na evolução não é a
proximidade genética entre as espécies, mas os genes responsáveis
pelas diferenças.
Se o que nos distingue dos ratos
são mesmo 300 genes, as interações entre estes e o ambiente envolvem imensa complexidade
biológica. É nessa pequena constelação de genes que está concentrado o mistério da condição humana.
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