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FERNANDO BONASSI
Segurança máxima
Todo cuidado será pouco!
Toda tensão será dobrada.
Toda liberdade será revista...
Qualquer explicação deverá ser
adiada. Qualquer cortesia deverá
ser abolida. Qualquer entendimento deverá ser condenado.
Qualquer novidade será restrita.
As pessoas serão cumprimentadas com o mínimo de civilidade
insuficiente, visando, desta forma, diminuir o caos inerente à
volúpia das intimidades.
Em tempo: não nos responsabilizaremos pela atração dos corpos
celestes!
Reclamações, direitos e obrigações poderão ser questionados.
A quem não gosta de se mover,
aconselha-se ficar parado.
Os miseráveis serão reprimidos
nas esquinas. Os ricos serão blindados em oficinas certificadas.
Por garantia, os pequenos guardarão as costas dos médios, que
lamberão as botas dos grandes.
Os grandes ficarão à própria sorte, o que aliás preferem, já que podem pagar do bom e do melhor
por sua proteção.
Os namorados deverão ficar
dentro de casa, dentro da sala,
dentro das regras, evitando a gravidez precoce e demais doenças...
por abstinência.
Os empregados que se aferrem
ao seu salário. Os desempregados
que se virem de quatro. É bom
que se diga: não poderemos garantir aqueles que já não se garantam um pouquinho, sabe como é? Por essas e outras, a esperança será desaconselhada como
prejudicial ao câncer do tempo.
Quem não conseguir esquecer,
que faça de conta.
A clareza será taxada na medida em que implique os haveres
das autoridades. As autoridades
terão autoridade. A autoridade
deverá ser respeitada. O respeito
será obrigatório. Quem não respeitar vai ficar sabendo na delegacia. As delegacias fornecerão
alguns habeas corpus, se for necessário, se houver, se alguém
procurar... Os que quiserem entregar os pontos, de todo modo,
que o façam de joelhos, braços pro
alto, deitando-se devagar e com
as mãos bem visíveis.
Esses cachorros mortos serão
chutados impiedosamente.
Os contratos serão feitos por debaixo do pano mesmo, ganhando
coletes de chumbo, à prova de
raios-X. Os conluios só serão permitidos na calada da noite, respeitando-se a lei do silêncio nos
acertos.
Quanto menos ficarmos sabendo, melhor pra nossa preocupação.
Os televisores desgraçados e os
corações sutis deverão ser desligados em meio aos fatos escabrosos.
Todos poderão tomar banho sossegados, escaldados nas águas
frias das ligações clandestinas.
O horário do jantar será temperado com notícias agradáveis.
Os cérebros serão fichados, integrando o patrimônio público. Os
cadáveres esquisitos, as catástrofes bíblicas e os paraísos fiscais
nem poderão ser mencionados,
salvo por pastores religiosos no
exercício da função. O exercício
da função ficará a cargo de funcionários com poder de ir, vir e ficar onde acharem melhor pra punição dos culpados por inocência.
A desconfiança será universal e
gratuita. As grades terão desconto
progressivo quanto menos deixarem vazar o que quer que seja. Os
muros serão erguidos em parceria
com a polícia secreta. Os segredos
serão esparramados. Os desejos
serão recolhidos. As estradas impagáveis e as pontes suicidas conterão dinamite pra se explodirem
entre uma gestão e outra, pondo a
culpa em terroristas empoeirados.
As alcovas serão revistadas. As
fofocas serão investigadas. A espionagem será digerida. As reputações e os ventiladores poderão
ser afetados.
As quitandas serão eletrificadas, os bancos mudarão de endereço toda semana, os executivos
se vestirão de mendigos e os mendigos se fantasiarão de palhaços.
Os palhaços serão presos, pois
ninguém estará pra brincadeiras.
Aquilo que for diferente será
perseguido até se tornar igual. O
que for bom e barato será chamado a explicar sua inteligência fora
de hora. O que for esperto poderá
ter algo mais, desde que se contente com o que derem e não faça
chantagem.
Os calmantes alucinógenos serão liberados. Os emagrecedores
eletrificados darão choques na inconsciência, liberando endorfinas
quando da execução do hino nacional. Os impostos serão colhidos
diretamente nas veias.
Os juízes continuarão nos açoitando com as leis e, à falta de
Deus nesse Estado laico de mistificações jurídicas, julgarão os próprios casos.
As multas ultrapassarão o olho
da cara. As mãos sujas de sangue
não poderão dar na vista, pelo
risco de infecção e cegueira.
Recomenda-se a tortura naquelas partes onde o legista contratado nem pensa. É preciso ter consciência. Ou advogados...
Quanto à morte mesmo, não temos preço no catálogo, mas podemos vir a abrir negociações.
Guardadas todas as estritas recomendações, todos estaremos seguros... praticamente seguros...
provavelmente seguros... menos
inseguros... que seja: pelo menos,
pelo mais, botamos seguranças!
Três em cada porta está mais que
bom; senão eles ficam de conversa
e não trabalham, não é mesmo?
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