São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

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FERNANDO BONASSI

Segurança máxima

Todo cuidado será pouco!
Toda tensão será dobrada.
Toda liberdade será revista...
Qualquer explicação deverá ser adiada. Qualquer cortesia deverá ser abolida. Qualquer entendimento deverá ser condenado. Qualquer novidade será restrita. As pessoas serão cumprimentadas com o mínimo de civilidade insuficiente, visando, desta forma, diminuir o caos inerente à volúpia das intimidades.
Em tempo: não nos responsabilizaremos pela atração dos corpos celestes!
Reclamações, direitos e obrigações poderão ser questionados.
A quem não gosta de se mover, aconselha-se ficar parado.
Os miseráveis serão reprimidos nas esquinas. Os ricos serão blindados em oficinas certificadas. Por garantia, os pequenos guardarão as costas dos médios, que lamberão as botas dos grandes. Os grandes ficarão à própria sorte, o que aliás preferem, já que podem pagar do bom e do melhor por sua proteção.
Os namorados deverão ficar dentro de casa, dentro da sala, dentro das regras, evitando a gravidez precoce e demais doenças... por abstinência.
Os empregados que se aferrem ao seu salário. Os desempregados que se virem de quatro. É bom que se diga: não poderemos garantir aqueles que já não se garantam um pouquinho, sabe como é? Por essas e outras, a esperança será desaconselhada como prejudicial ao câncer do tempo.
Quem não conseguir esquecer, que faça de conta.
A clareza será taxada na medida em que implique os haveres das autoridades. As autoridades terão autoridade. A autoridade deverá ser respeitada. O respeito será obrigatório. Quem não respeitar vai ficar sabendo na delegacia. As delegacias fornecerão alguns habeas corpus, se for necessário, se houver, se alguém procurar... Os que quiserem entregar os pontos, de todo modo, que o façam de joelhos, braços pro alto, deitando-se devagar e com as mãos bem visíveis.
Esses cachorros mortos serão chutados impiedosamente.
Os contratos serão feitos por debaixo do pano mesmo, ganhando coletes de chumbo, à prova de raios-X. Os conluios só serão permitidos na calada da noite, respeitando-se a lei do silêncio nos acertos.
Quanto menos ficarmos sabendo, melhor pra nossa preocupação.
Os televisores desgraçados e os corações sutis deverão ser desligados em meio aos fatos escabrosos. Todos poderão tomar banho sossegados, escaldados nas águas frias das ligações clandestinas.
O horário do jantar será temperado com notícias agradáveis.
Os cérebros serão fichados, integrando o patrimônio público. Os cadáveres esquisitos, as catástrofes bíblicas e os paraísos fiscais nem poderão ser mencionados, salvo por pastores religiosos no exercício da função. O exercício da função ficará a cargo de funcionários com poder de ir, vir e ficar onde acharem melhor pra punição dos culpados por inocência.
A desconfiança será universal e gratuita. As grades terão desconto progressivo quanto menos deixarem vazar o que quer que seja. Os muros serão erguidos em parceria com a polícia secreta. Os segredos serão esparramados. Os desejos serão recolhidos. As estradas impagáveis e as pontes suicidas conterão dinamite pra se explodirem entre uma gestão e outra, pondo a culpa em terroristas empoeirados.
As alcovas serão revistadas. As fofocas serão investigadas. A espionagem será digerida. As reputações e os ventiladores poderão ser afetados.
As quitandas serão eletrificadas, os bancos mudarão de endereço toda semana, os executivos se vestirão de mendigos e os mendigos se fantasiarão de palhaços. Os palhaços serão presos, pois ninguém estará pra brincadeiras.
Aquilo que for diferente será perseguido até se tornar igual. O que for bom e barato será chamado a explicar sua inteligência fora de hora. O que for esperto poderá ter algo mais, desde que se contente com o que derem e não faça chantagem.
Os calmantes alucinógenos serão liberados. Os emagrecedores eletrificados darão choques na inconsciência, liberando endorfinas quando da execução do hino nacional. Os impostos serão colhidos diretamente nas veias.
Os juízes continuarão nos açoitando com as leis e, à falta de Deus nesse Estado laico de mistificações jurídicas, julgarão os próprios casos.
As multas ultrapassarão o olho da cara. As mãos sujas de sangue não poderão dar na vista, pelo risco de infecção e cegueira.
Recomenda-se a tortura naquelas partes onde o legista contratado nem pensa. É preciso ter consciência. Ou advogados...
Quanto à morte mesmo, não temos preço no catálogo, mas podemos vir a abrir negociações. Guardadas todas as estritas recomendações, todos estaremos seguros... praticamente seguros... provavelmente seguros... menos inseguros... que seja: pelo menos, pelo mais, botamos seguranças! Três em cada porta está mais que bom; senão eles ficam de conversa e não trabalham, não é mesmo?


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