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CONTARDO CALLIGARIS
Moralistas imorais
Uma queixa banal e barulhenta repete que a modernidade vai para a perdição. Aliás,
parece que já foi: sumiram os valores que orientavam nossos pais
ou, no mínimo, nosso avós. Dizem que ficamos como baratas
tontas, sem rumo e sem critérios
para distinguir o bem e o mal.
Pois bem, penso o contrário. A
modernidade é uma época profundamente moral, de uma maneira inédita pela forma e pela intensidade.
A novidade é que valores e princípios não são respeitáveis por
sua origem. Se foi Deus quem disse ou foram os anciões que nos legaram, tanto faz: de qualquer forma, isso não basta. Cada um de
nós, em seu foro íntimo, tem a responsabilidade de decidir o que é
certo e o que é errado. Tarefa difícil: visto que recusamos a autoridade (divina ou tradicional) das
normas, nosso julgamento é sempre concreto. Claro, adotamos
princípios gerais, que são os mesmos de sempre; mas, para nós, a
moralidade de um ato só pode ser
decidida examinando sua complexidade efetiva.
Por exemplo, "não roubar" é
um bom princípio. No entanto,
como fica se alguém rouba do
narcotráfico para financiar um
hospital? Roubar a mercadoria de
uma loja por um irresistível impulso neurótico é diferente de
roubar a mesma para revendê-la
na esquina, não é? Ou ainda, ser
deputado e extraviar dinheiro
público é menos ou mais grave do
que assaltar cidadãos no farol?
Não é suficiente verificar se um
ato é ou não conforme à regra instituída, ainda devemos perguntar: "O sujeito desse ato, na infindável complexidade de suas motivações e do contexto, agiu justamente ou não?".
Ora, não há como julgar os outros (suas intricadas motivações e
reações) sem aceitar que eles são
meus semelhantes e sem, de alguma forma, identificar-me com
eles por um instante. Para julgar,
preciso entender os outros e, para
entendê-los, preciso me conhecer
o suficiente para encontrar em
mim mesmo todos (ou quase) os
traços da diversidade humana.
É reconhecendo em mim os desejos (reprimidos ou não) de matar, roubar, fornicar etc. que ganho a capacidade e a autoridade
para avaliar as condutas de
quem, eventualmente, reprime
esses mesmos desejos menos do
que eu.
O interesse pela psicologia, desde a franqueza exacerbada de
Montaigne até a psicanálise, passando pela introspecção romântica, é uma condição cultural necessária da moralidade moderna.
Quem não investiga e não reconhece sua própria complexidade
não pode avaliar a complexidade
das motivações de seus semelhantes.
Claro, a especificidade da moralidade moderna atrapalha
qualquer atitude normativa, a
começar pela administração da
Justiça: para os modernos, julgar
é difícil e condenar é penoso. Pois
mesmo o criminoso hediondo ganha, para nós, figura humana. E,
bem aquém do hediondo, como
jogar pedras na adúltera? E na
mãe que não quer que sua filha
de 12 anos tenha um filho?
A forma da moralidade moderna não é o veredicto, mas a pergunta. Para nós, é moral quem
passa constantemente pelos impasses insolúveis de questões morais concretas. E é propriamente
imoral o moralista, que declara
saber de antemão o que é o bem e
o que é o mal.
O moralista é imoral porque,
julgando o próximo segundo um
sistema de regras instituídas, ele
evita o rigor da exigência moral
moderna. Castigar os outros é,
para ele, o melhor jeito de desconhecer seus desejos menos confessáveis. Ou seja, o moralista condena para se absolver.
E há mais: o moralista escolhe a
dedo os princípios que ele reconhece e quer impor ao mundo.
Como ele supõe que o funcionamento da moral seja igual ao dos
códigos penais, ele presume que
seja permitido tudo o que não é
proibido pelas normas que ele escolheu. Com isso, a preocupação
moral do moralista é seletiva.
Por exemplo, ele pode censurar
e condenar a interrupção de gravidez, os métodos anticoncepcionais, o uso de células-tronco para
pesquisa, a pornografia e a libertinagem e, ao mesmo tempo, assinar cheques sem fundo ou legislar
em causa própria para ordenar
aumentos descabidos de seu salário. Afinal, seu decálogo não diz
nada explicitamente sobre malversar os bens públicos, e um cheque sem fundo não é bem roubar...
Condenando para se absolver e
selecionando princípios de maneira a inocentar seus atos piores,
o moralista moderno é o verdadeiro sepulcro caiado que indignava o Cristo.
Qual é a fonte de seu sucesso?
Por que ocupa os púlpitos das
igrejas e os corredores do poder,
de Washington a Brasília?
Num mundo atormentado pela
dificuldade da questão moral, o
moralista nos apresenta nossa
atribulada perplexidade como se
não fosse uma conquista de nossa
cultura, mas um sinal de fraqueza, de crise, de decadência. Logo,
ele promete alívio e nos sugere o
caminho da nostalgia: voltem para a antiga moral normativa, julgar será tão fácil... A troco do descanso que lhes ofereço, só deixem
um dízimo na saída, ok?
Assim os (autodenominados)
campeões da norma moral ganham um respeito que não merecem.
Essas reflexões são inspiradas
pela eleição de Severino Cavalcanti à presidência da Câmera
dos Deputados.
@ - ccalligari@uol.com.br
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