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MANUEL DA COSTA PINTO
O carrasco e sua cena
Ensaio do professor Renato Janine Ribeiro faz lembrar que Camus e Koestler refletiram sobre pena capital
"RAZÃO E SENSIBILIDADE", ensaio de Renato Janine
Ribeiro sobre o assassinato do menino João Hélio Fernandes, publicado no Mais! do último
domingo, provocou reações virulentas de adesão e repúdio.
Seria insensato, contudo, ver na
intervenção do filósofo uma apologia da pena capital. O texto pode levar água para o moinho da imprensa sensacionalista ou dos defensores de esquadrões da morte. Mas
esse é um efeito possível da reflexão de Janine -não seu objetivo.
Escrito sob o impacto do crime, o
ensaio revela um impasse. "Algo
que é muito importante no exercício do pensamento", diz ele, "é que
atribuamos aos sentimentos que se
apoderam de nós o seu devido peso
e papel. Não posso pensar em dissonância completa com o que sinto. A razão, sem dúvida, segura
muitas vezes as paixões desenfreadas. (...) Mas isso vale quando a dissonância, insisto, não é completa.
Se o que sinto e o que digo discordam em demasia, será preciso
aproximá-los. Será preciso criticar
os sentimentos pela razão -e a razão pelos sentimentos, que no fundo são o que sustenta os valores."
O argumento foi severamente
criticado na própria Folha por Vinicius Torres Freire, que viu nele
uma legitimação da fúria emotiva
como plataforma de revisões indiscriminadas da lei penal. Entretanto, a intenção do ensaio não é convocar reformas jurídicas. "Não
consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas", diz Janine.
O texto é assumidamente hesitante: expõe o horror diante da
brutalidade mas também diante do
sentimento de vingança, dessa fantasia lúgubre de ver os criminosos
supliciados. Se há algo questionável aí, é o fato de explicitar contradições interiores -atitude que não
condiz com o papel que o senso comum espera do intelectual.
A melhor resposta a suas ambigüidades, portanto, seria buscar
um correlato desse episódio abominável. Pois a execução legal também pode ser um crime hediondo,
como sugere o livro "Reflexões sobre a Pena Capital", publicado há
50 anos, reunindo ensaios de Arthur Koestler ("Reflexões sobre a
Forca") e Albert Camus ("Reflexões sobre a Guilhotina").
O volume traz discussões sobre
os sistemas penais da Inglaterra
(onde o húngaro Koestler se radicara) e da França. O foco, porém,
são as vivências desse ritual macabro. O autor de "O Zero e o Infinito", que esteve no corredor da morte durante a Guerra Civil Espanhola, mostra o aspecto grotesco dos
enforcamentos e reconstitui casos
de carrascos que tentaram suicídio. E Camus lembra a náusea incontrolável de seu pai após assistir
a uma decapitação -cena que seria
retomada em chave ficcional em
"A Peste" e "O Primeiro Homem".
O livro nos ajuda a materializar
mentalmente a cena da execução
-cujo calculismo é, a seu modo,
tão repugnante quanto o crime que
acabamos de testemunhar- e a repelir assassinos e verdugos. "Reflexões sobre a Pena Capital" deveria
ser publicado urgentemente no
Brasil. Mas, como sabemos, há urgências mais capitais.
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