São Paulo, terça-feira, 24 de março de 2009

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De volta ao passado

Com bons e maus resultados, os musicais "A Noviça Rebelde", "Sassaricando..." e "Beatles num Céu de Diamantes" investem no saudosismo e em velhas fórmulas

Rafael Hupsel/Folha Imagem
Elendo do musical "A Noviça Rebelde", em cartas no teatro Alfa

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

O teatro musical brasileiro, desde os tempos de Arthur Azevedo, sempre esteve nas graças do grande público. A nova leva de espetáculos que combina produções importadas com legítimos similares nacionais confirma essa tradição. No caso de três estreias recentes em São Paulo, da lavra de Claudio Botelho e Charles Möeller, percebe-se, em comum, um olhar para o passado, variando só as brasas adormecidas que são assopradas.
Em "Sassaricando - E o Rio Inventou a Marchinha", é o Brasil da primeira metade do século 20 que é evocado, ou uma alegria e inocência inimagináveis para gerações mais jovens. "Beatles num Céu de Diamantes" remete aos anos 60, sonhando o que teriam sido os Beatles se o mundo mau da contracultura não tivesse desviado aqueles rapazes do bom caminho. Em "A Noviça Rebelde", marcado pelo otimismo do pós-guerra, o anacronismo é mais justificado. Trata-se afinal de um clássico do gênero, se bem que não menos datado.
"Sassaricando..." e "Beatles..." saem da mesma forma: uma sequência ininterrupta de belas canções ilustradas por situações cênicas bem artificiais, com marcas precisas, gestual contido e caras compenetradas, além de uma cozinha sonora sintética e eficiente. Mas os resultados são distintos.
Em "Sassaricando...", o tom é de deboche; as 89 marchas eleitas compõem um colar de pérolas da MPB e a encenação homenageia o teatro de revista. Coroando essa investigação nostálgica há a presença de Eduardo Dussek que, encantadoramente decadente, cria um estranhamento interessante para o público, na sua maioria da terceira idade.
Em "Beatles...", apaga-se qualquer rebeldia que o grupo possa ter inspirado, limam-se as asperezas e nivelam-se as melodias em arranjos adocicados. À parte alguns belos momentos corais, em geral sucedem-se solos de mau gosto, a sugerir um show de Celine Dion cantando Beatles.
Comprovando esta domesticação, omite-se a canção "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", que dá título ao LP mais radical da banda, por acaso o que contém "Lucy in the Sky with Diamonds". Quando esta é cantada, no final, as bolinhas de sabão que representariam os diamantes mencionados na letra e no título do espetáculo camuflam a menção ao LSD -ácido lisérgico- e geram uma certa náusea.
Em "A Noviça Rebelde", se há também o saudosismo de um tempo em que as crianças não assistiam à televisão e eram mais bem-educadas, entra-se em um outro patamar, o dos grandes musicais. É uma montagem genuinamente brasileira, o que significa dizer que teve o desenvolvimento da dramaturgia cênica, da cenografia, dos figurinos e da iluminação realizados por artistas e técnicos brasileiros.
Para os diretores, é mais um desafio na batalha que vêm travando para implementar no país um modo de produção que independa da matriz dos grandes centros de geração de musicais, Londres e Nova York. É um projeto respeitável que vem sendo construído consistentemente nos últimos anos.
O espetáculo confirma a excelência já alcançada em todos os níveis da produção, desde o acabamento da cenotécnica até, neste caso, à preparação das crianças. Todas essas virtudes -e mesmo o fato de basear-se no texto da primeira montagem da Broadway e não no roteiro do filme- não conseguem esconder as limitações dramáticas, que não são do espetáculo, mas do gênero.
Os ditos "musicais" trabalham na chave melodramática, campeã de audiências desde o início do século 19, nessa combinação de drama e música. O melodrama e suas variações contemporâneas -a telenovela brasileira e o cinema de Hollywood- seguem em geral um roteiro conhecido, em que, depois de sofrimento excessivo, os heróis se reconciliam com a felicidade, de preferência casando-se com ela para sempre.
É o reino da previsibilidade e da redundância, onde a surpresa só é aceitável na alteração dos fatores, mas sem que se altere o produto. No caso de "A Noviça...", quando, ao final, os atores que interpretam os nazistas, em vez de aplausos, recebem vaias de um público em delírio, concretiza-se mais uma vez a fórmula vitoriosa.
Há quem sustente que o musical da Broadway é um fenômeno teatral parecido com a antiga tragédia grega, que combinava dança e canto para evocar mitos do passado e dialogar com os cidadãos sobre os seus traumas presentes. No caso de "A Noviça..." e dos outros musicais, se há a nostalgia de tempos melhores, não se quer levar o público a atualizar suas próprias questões. Trata-se apenas de entorpecê-lo, mais uma vez, com os velhos truques da emoção barata.


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