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MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO
Carta de Caminha é reverenciada e criticada
JULIANA MONACHESI
especial para a Folha
"Pero Vaz de Caminha tem o mérito de ter sido o padrinho da rede de
dormir, talvez a
maior contribuição
indígena para nossa cultura, porque é o embalo do sonho", afirma
Gilberto Vasconcellos, professor
de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Os especialistas se dividem entre a reverência e a desmitificação
com a volta da carta de Caminha
ao Brasil, para a celebração do
quinto centenário do Descobrimento. O documento, um relato
ao rei de Portugal D. Manuel 1º,
sobre a expedição de Cabral, é
considerado a primeira notícia
oficial sobre a existência do Brasil,
e estará exposto na Mostra do Redescobrimento a partir de amanhã, em São Paulo.
A carta chega acompanhada de
uma seleção de arte portuguesa
do século 16, vinda do Museu de
Setúbal, para contextualizar esteticamente o período da descoberta, e de diversos documentos, entre eles a versão catalã do Tratado
de Tordesilhas.
A vinda da carta é uma ocasião
única para apontar os elementos
mitificantes da história, na opinião do historiador José Murilo
de Carvalho, professor titular do
departamento de história da Universidade Federal do Rio.
A carta de Caminha só foi publicada em 1817 por Aires de Casal.
Até então, o grande documento
da chegada dos europeus aqui entre 1499 e 1501 (os espanhóis Hojeda, Pinzón e Diego de Leppe, o
português Cabral, o florentino
Vespúcio) era a carta de Vespúcio
a Lourenço de Médici, publicada
em 1503, explica Carvalho.
Igualmente conhecida foi a carta de Vespúcio a Soderini, publicada em torno de 1505, relatando
sua segunda viagem. As duas lhe
valeram a homenagem de Waldseemuller, que chamou de América o novo continente.
"Por aí já se vê que considerar a
carta de Caminha nossa certidão
de nascimento já faz parte de uma
construção que inclui dois elementos principais: afirmar a primazia portuguesa em nossas terras e firmar uma visão idílica do
contato entre portugueses e nativos", afirma o historiador.
Com pompa e circunstância, o
documento será exposto com iluminação e segurança especiais,
colocado contra uma parede dourada, envolto em uma aura de
preciosidade. A visão crítica fica
por conta dos artistas brasileiros.
Inicialmente ela seria acompanhada de 11 releituras da carta feitas por artistas portugueses, uma
pequena exposição que a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses atrelou à vinda do documento ao Brasil. O curador Emanoel Araújo convidou artistas
brasileiros para fazer o mesmo.
O paraense Emmanuel Nassar
reproduziu uma das páginas da
carta e mandou ampliar em banner. Sobre ela, imprimiu suas iniciais, rasgando o vinil.
"Cometi um ato de vandalismo,
produzindo um grafite desses que
se vêem nas ruas, que são a mais
radical expressão do individualismo", diz Nassar. A carta, ao ser
ampliada tantas vezes, apresentou uma granulação. "De longe é
um documento histórico, de perto é pop", brinca.
A leitura contemporânea está
na visão de um documento de 500
anos por meio de reprodução tecnológica moderna.
Rasurar a carta estabelece um
diálogo com algo primitivo. São
duas linguagens se cruzando,
uma intersecção entre o simbolismo das imagens: a carta sendo
um símbolo coletivo e o vandalismo, um símbolo individual.
Luiz Zerbini criou uma escultura da fusão de dois corpos sem cabeça e colocou sobre os torsos
unidos dois crânios. "Nunca tinha lido a carta toda, achei que
meu trabalho tinha a ver com
ela", diz o artista, que pintava paisagens figurativas.
"A primeira imagem que um
cara tem do Brasil é essa, é a paisagem. Depois, o encontro de duas
civilizações trouxe coisas boas e
ruins, daí retratar o drama da diferença, remetendo inclusive à
questão da antropofagia", diz.
Se Caminha escrevia sobre o
comportamento dos índios, que,
ao cabo de uma semana, "andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos
entre eles", manso é o comportamento dos portugueses ao reinterpretar a carta. "Enquanto eles
fazem obras ilustrativas, os brasileiros são viscerais", diz o curador-geral, Nelson Aguilar.
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