São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000


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MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO
Carta de Caminha é reverenciada e criticada

JULIANA MONACHESI
especial para a Folha


"Pero Vaz de Caminha tem o mérito de ter sido o padrinho da rede de dormir, talvez a maior contribuição indígena para nossa cultura, porque é o embalo do sonho", afirma Gilberto Vasconcellos, professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Os especialistas se dividem entre a reverência e a desmitificação com a volta da carta de Caminha ao Brasil, para a celebração do quinto centenário do Descobrimento. O documento, um relato ao rei de Portugal D. Manuel 1º, sobre a expedição de Cabral, é considerado a primeira notícia oficial sobre a existência do Brasil, e estará exposto na Mostra do Redescobrimento a partir de amanhã, em São Paulo.
A carta chega acompanhada de uma seleção de arte portuguesa do século 16, vinda do Museu de Setúbal, para contextualizar esteticamente o período da descoberta, e de diversos documentos, entre eles a versão catalã do Tratado de Tordesilhas.
A vinda da carta é uma ocasião única para apontar os elementos mitificantes da história, na opinião do historiador José Murilo de Carvalho, professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio.
A carta de Caminha só foi publicada em 1817 por Aires de Casal. Até então, o grande documento da chegada dos europeus aqui entre 1499 e 1501 (os espanhóis Hojeda, Pinzón e Diego de Leppe, o português Cabral, o florentino Vespúcio) era a carta de Vespúcio a Lourenço de Médici, publicada em 1503, explica Carvalho.
Igualmente conhecida foi a carta de Vespúcio a Soderini, publicada em torno de 1505, relatando sua segunda viagem. As duas lhe valeram a homenagem de Waldseemuller, que chamou de América o novo continente.
"Por aí já se vê que considerar a carta de Caminha nossa certidão de nascimento já faz parte de uma construção que inclui dois elementos principais: afirmar a primazia portuguesa em nossas terras e firmar uma visão idílica do contato entre portugueses e nativos", afirma o historiador.
Com pompa e circunstância, o documento será exposto com iluminação e segurança especiais, colocado contra uma parede dourada, envolto em uma aura de preciosidade. A visão crítica fica por conta dos artistas brasileiros.
Inicialmente ela seria acompanhada de 11 releituras da carta feitas por artistas portugueses, uma pequena exposição que a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses atrelou à vinda do documento ao Brasil. O curador Emanoel Araújo convidou artistas brasileiros para fazer o mesmo.
O paraense Emmanuel Nassar reproduziu uma das páginas da carta e mandou ampliar em banner. Sobre ela, imprimiu suas iniciais, rasgando o vinil.
"Cometi um ato de vandalismo, produzindo um grafite desses que se vêem nas ruas, que são a mais radical expressão do individualismo", diz Nassar. A carta, ao ser ampliada tantas vezes, apresentou uma granulação. "De longe é um documento histórico, de perto é pop", brinca.
A leitura contemporânea está na visão de um documento de 500 anos por meio de reprodução tecnológica moderna.
Rasurar a carta estabelece um diálogo com algo primitivo. São duas linguagens se cruzando, uma intersecção entre o simbolismo das imagens: a carta sendo um símbolo coletivo e o vandalismo, um símbolo individual.
Luiz Zerbini criou uma escultura da fusão de dois corpos sem cabeça e colocou sobre os torsos unidos dois crânios. "Nunca tinha lido a carta toda, achei que meu trabalho tinha a ver com ela", diz o artista, que pintava paisagens figurativas.
"A primeira imagem que um cara tem do Brasil é essa, é a paisagem. Depois, o encontro de duas civilizações trouxe coisas boas e ruins, daí retratar o drama da diferença, remetendo inclusive à questão da antropofagia", diz.
Se Caminha escrevia sobre o comportamento dos índios, que, ao cabo de uma semana, "andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles", manso é o comportamento dos portugueses ao reinterpretar a carta. "Enquanto eles fazem obras ilustrativas, os brasileiros são viscerais", diz o curador-geral, Nelson Aguilar.


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