São Paulo, sábado, 24 de abril de 2010

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Crítica/"Alameda Santos"

Romance autobiográfico revisita dor e delícia dos 80

MARCELO MOUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ivana Arruda Leite não cabe no escaninho redutor da "literatura feminina".
As narrativas, embora quase sempre protagonizadas por mulheres, recusam o registro delicado e sentimental, nada têm da névoa cor-de-rosa que paira sobre a chamada "chick lit". Os livros trazem uma figura feminina emancipada, livre, dona de si. Sexo frágil, sim, mas que não foge à luta.
"Alameda Santos" reitera essa marca. A trama é singela: na semana entre o Natal e o Réveillon, uma mulher com pouco mais de 30 anos senta-se diante do gravador e, à medida que esvazia garrafas de vinho ou uísque, relata os principais fatos de sua vida na temporada que passou. O rito se repete entre 1984 e 1992. Já no enredo, fica claro que, a exemplo de livros anteriores, o combustível da narrativa são os conflitos existenciais da protagonista. Agora, porém, a conjuntura brasileira aparece quase como uma segunda personagem.
O cenário cultural e político já se fazia presente em "Eu Te Darei o Céu" (2004), no qual Ivana redesenha os anos 60.
Em "Alameda Santos", contudo, a conexão entre o drama individual e o contexto histórico é mais sensível, matizado. À instabilidade emocional da personagem correspondem os sobressaltos do país numa época de intensas mudanças.
Inflação, Diretas, morte de Tancredo, Aids, impeachment de Collor, tudo é comentado nas gravações, enquanto a narradora dá o testemunho de alegrias e, sobretudo, dores eminentemente pessoais. Divorciada, infeliz no emprego, envolvida com um homem casado e bissexual, sua insatisfação não encontra abrigo.
O texto é pouco adjetivado, mais tributário do conteúdo que da forma e consegue reproduzir com êxito a informalidade da linguagem oral. Em alguns momentos, entretanto, a lembrança da narradora parece remota demais para quem viveu os episódios relatados apenas alguns meses antes.
É como se a reminiscência fosse de Ivana, não da heroína, numa pequena quebra do pacto ficcional entre autor e leitor. E não são poucas as correlações biográficas. A protagonista foi funcionária da Caixa, estudou sociologia, morou na alameda Santos, separou-se e tem uma filha, assim como Ivana, que também fazia gravações com relatos particulares.
Realidade ou fantasia, importa é o que as fitas sugerem: a tentativa, por parte da personagem, de decodificar suas experiências, organizar a turbulência íntima, dando um molde, ainda que tênue, ao caos interno. Uma busca incessante, não raro frustrada, e que talvez seja a de todo escritor na eterna peleja com as palavras.


MARCELO MOUTINHO é autor de "Somos Todos Iguais Nesta Noite" (Rocco)

ALAMEDA SANTOS

Autora: Ivana Arruda Leite
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 38 (160 págs.)
Avaliação: bom


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